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Um pé livre
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CHICO FELITTI
DE SÃO PAULO
Se você olhar de perto, verá as marcas de quando vivi presa. Foram mais de 20 anos acorrentada a um muro da rua Xavier de Toledo. Como se eu fosse sair e, em menos de cinco minutos de caminhada, chegar ao Theatro Municipal, que vejo do alto dos meus quase 20 metros.
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Mas fui libertada. Em 6 de janeiro de 2011, funcionários da prefeitura me passaram em consulta e tiraram o grilhão. Mas só depois de declarar publicamente que eu não iria tombar. Talvez fosse o caso de eu ser tombada (de outro jeito, é claro), como o largo onde fico, considerado patrimônio histórico tanto pelo Estado quanto pelo município.
Sou cidadã honorária, por assim dizer. Nasci nesta terra. Se não em São Paulo, na mata atlântica que antigamente já rodeou mais a cidade.
Consigo entender o medo que levou alguém a me prender. Talvez seja porque eu me incline sobre o obelisco, chamado de pirâmide do Piques e erguido em granito em 1814, um dos primeiros monumentos da então modesta São Paulo.
O medo, entretanto, não passava de uma má impressão. "Não fazia senti do agrilhoar essa árvore", diz o biólogo Celso Mutelli. "Deve ter sido um dos grandes mistérios dessa cidade, que teme a natureza. Ninguém acorrentou a torre de Pisa por ter envergado, acorrentou?"
Fico lisonjeada com a comparação.
ÁRVORES DE SÃO PAULO |
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Veja o perfil de algumas das mais antigas |
Madame entre árvores, árvore entre madames |
Disfarce de uma sobrevivente |
A última jade atlântica |
A mais alta da micareta |
No ritmo da preguiça |
O triste fim da primeira árvore |
Um pé livre |
Enquanto isso, pessoas que saem aos milhares da boca do metrô Anhangabaú, da linha 3-vermelha, e me veem, fazem outras comparações. "Ela está tão livre quanto eu vou ser daqui a pouco", diz a empregada doméstica Cida Souto, 45, referindo-se aos direitos trabalhistas recém-adquiridos pela categoria.
Só que guardo ainda alguns elos da corrente no meu tronco. Se fossem tirados, disseram os técnicos da prefeitura (que fiquei duas décadas sem ver), eles poderiam ferir meu tecido --lanhado, ficaria apetitoso para pragas e doenças.
Mas os excertos metálicos não são meu maior monumento à tristeza. A fonte aos pés das minhas raízes está sem uma gota de água. Secos, os azulejos viraram depósito de lixo. Um morador de rua colocou colchões entre vãos da minha raiz e lá dorme há duas semanas. "É minha casa na árvore", diz ele, que ainda não me contou seu nome.
Figueira (Ficus organensis) - Largo da Memória, Anhangabaú, centro de São Paulo
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