|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Promover ou diminuir o aborto?
ANTONIO MARCHIONNI
O "delírio de onipotência" da razão científica põe em perigo o planeta. Costuma-se falar das patologias da religião. E as da razão?
O "DELÍRIO de onipotência" da
razão científica e utilitarista
põe em perigo o planeta e a sociedade. Costuma-se falar das patologias da religião nos séculos. E as patologias da razão?
O que fez a razão médica em Auschwitz e a razão psiquiátrica nos manicômios? O que fez a razão tecnológica
em Hiroshima, nas trincheiras com
gazes asfixiantes, nas hecatombes das
guerras mundiais, no envenenamento do planeta? O que fez a razão política nos "gulags" e nas câmaras de tortura? O que faz a razão sociológica na
sociedade terapeutizada sob insônias
e psicanalistas? O que faz a razão jurídica quando agracia os juízes com salários 70 vezes maiores que os do povo, ao preço de uma guerra fratricida
com 50 mil execuções anuais? O que
fará a razão ativista e feminista ao
propor a eliminação aos milhões de
embriões e fetos?
Ninguém é inocente. Vistamos a
humildade e não olhemos o aborto a
partir do nariz adulto, mas nos curvemos sobre a fofura do feto. Nenhuma
das ciências, todas elas incipientes,
pode excluir que o feto sente alegria-dor, entende as bisbilhotices dos
adultos e treme ante o bisturi.
Por qual insensatez debatemos como legalizar as mortes por aborto, e
não como diminuí-las? A proliferação
do mal à sombra da lei não comporta a
legalização, como o aumento do roubo não faz concluir por sua permissão. O Brasil, primado mundial em assassinato, não necessita ampliar a
mentalidade de morte. É hora de um
levante cultural pela diminuição das
mortes.
Diminuiria a gravidez indesejada se
ensinássemos a virtude aos jovens, se
reconstituíssemos a família e os rituais de iniciação religioso-civil para
crianças e adolescentes, se forjássemos a alma da nação com uma televisão pública mais forte que a intriga
novelesca das privadas, se superássemos a monocultura materialista-relativista das universidades.
Diminuiria a tentação de abortar
por razões econômicas se, longe de
ensangüentar bilhões de reais em
centros cirúrgicos de extermínio, a
classe política destinasse tal dinheiro
ao sustento das crianças nascidas da
gravidez indesejada.
Diminuiria a tentação de abortar
por razões emotivas se a comunidade
adquirisse a cultura de abraçar, e não
socar, a menina grávida.
Despencaria a gravidez indesejada
se, numa reengenharia social de profissões e remunerações, voltássemos
ao casamento no começo da maioridade, como foi durante 100 mil anos
desde as cavernas até 1950, quando a
juventude curtia uma sexualidade
diária, que nossos jovens nem sonham. De alguma forma será refeita
essa sociedade se quisermos sobreviver no planeta em febre.
O Brasil não precisa macaquear a
França e os países avançados que, em
sala de aula, são imperialismo cultural e, em tema de aborto, viram paradigma de progresso. O que está em jogo no século 21 é a vitória da "cultura
da vida" sobre a "cultura da morte": o
Brasil pode muito bem encabeçar,
uma vez na vida, a fila dos países jovens em luta pelo Bom.
Cuidemos dos termos. O aborto é
algo grave, é a ocisão (ato de matar) do
feto. Sufocar o inerme nunca será um
direito humano. Inutilmente usaremos eufemismos, como interrupção
da gravidez ou direito humano de decidir ou saúde da mulher ou caso de
saúde pública. Essas roupagens coloridas não mudam a substância: trata-se de uma ocisão, que mancha a mão
de sangue e faz muito mal ao filho, aos
pais, ao grupo social.
Mas, se dirá, aquilo não é pessoa
humana, é punhado de células. Então,
perguntemos à ciência, à filosofia e à
teologia.
A ciência psicológica diz que a mãe
desejosa de engravidar vê naquele milímetro pulsante os olhinhos e a boquinha do filho: o resto é conversa.
A ciência biológica diz que o óvulo
fecundado é um ser humano, e não
um ser eqüino ou um fenicóptero: só
por interesse um cientista afirma o
contrário.
A filosofia diz que o óvulo fecundado pertence ao gênero Homo sapiens e
é "pessoa" tanto quanto o será como
bebezinho na maternidade e garotinho na escola: só traindo a missão de
sentinela do ser humano um filósofo
ensina o contrário.
A teologia diz que o embrião é filho
do Altíssimo e possuidor da alma
imortal, que permanece viva após a
ocisão do corpo: os pais reencontrarão esse filho no além e terão que
explicar-se.
Dar licença ao aborto é um atalho
rápido, mas espinhoso. Promover a
vida é escalada longa, mas radiosa.
ANTONIO MARCHIONNI, 63, mestre em teologia pela
PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e
doutor em filosofia pela Unicamp (Universidade Estadual
de Campinas), é professor de teologia na PUC-SP e de filosofia medieval na Unifai. É autor, entre outras obras, de "Deus e o Homem na História dos Saberes".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES José Auricchio Júnior: Regionalidade: ação e sentimento coletivo Próximo Texto: Painel do Leitor Índice
|