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Cinema/estréias - Crítica/"O Sol"
Belo filme do russo Sokurov questiona tempo e imagem
Diretor aborda rendição japonesa na Segunda Guerra em longa de ritmo espaçado
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
"O Sol" não é um filme
em que tudo acontece rápido. Feita a
advertência, será o caso de observar que quem mais tem a ganhar vendo este filme é o espectador para quem filmes são coisa que deve correr às pressas.
Porque tudo neste filme de
Alexander Sokurov trata da dissociação (e da busca de adequação) entre gestos e palavras, expressão física e discurso. Estamos no Japão, no fim da Segunda Guerra, e o imperador Hiroito (o sol do título) deve se ocupar da inevitável rendição de
seu país face às forças aliadas.
O Japão é, por si, um país que
desenvolveu no mais alto grau
uma ritualística que intermedeia as relações humanas. Um
gesto de mão ou uma mesura
com a cabeça são coisas que
têm, por si, significado preciso.
Além disso, trata-se de estabelecer contato com uma cultura
bem diferente. Para ficar num
exemplo lancinante: enquanto
o povo japonês vê no seu imperador um deus encarnado, os
fotógrafos dos EUA o chamam
de "Charlie" (porque o acham
parecido com Charlie Chaplin).
Não por acaso, o traço mais
marcante da gestualidade de
Hiroito é um tique em que sua
boca se move sem pronunciar
nenhuma palavra. É dessa dissociação entre som e imagem
que "O Sol" se ocupa, mais de
que qualquer outra coisa.
Entre nós, esse tipo de partição é verificável em situações
que chamamos de "saia justa":
quando, por qualquer motivo,
não sabemos, por exemplo, o
que fazer com as mãos. Nesses
momentos recorremos a gestos
convencionais (como, digamos,
cumprimentar um inimigo),
percebemos a funcionalidade
da convenção (o quanto é indispensável à vida social) e seu caráter de artifício. Tudo se torna
questionável: tanto o gesto como a hipótese de não fazê-lo, ou
a sombra repulsa no olhar que
desmente o aperto de mão.
Um filme que trate desses assuntos passa, é claro, pelo difícil entendimento entre Hiroito
e o general MacArthur, comandante das forças de ocupação.
Ambos têm situação delicada a
gerenciar: Hiroito deve renunciar à condição divina para permanecer imperador; MacArthur deve impor sua lei ao Japão com o maior tato possível.
Não raro, nota-se o quanto é
doloroso o contato (quando Hiroito alude às bombas atômicas; e MacArthur, em resposta,
cita o ataque a Pearl Harbor).
Tudo leva o filme a se organizar em torno de tempos lentos,
que são, de resto, os preferidos
do diretor. "O Sol" é um belo filme em que ainda o rebaixamento cromático e a luz subexposta nos trazem a esse trabalho em que Sokurov fala com
desenvoltura do tempo dos homens e do tempo das imagens.
O SOL
Produção: Rússia/França/Itália/Suíça, 2005
Direção: Alexander Sokurov
Com: Issei Ogata, Robert Dawson
Onde: em cartaz no Frei Caneca Unibanco Arteplex
Avaliação: bom
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