São Paulo, sexta-feira, 04 de abril de 2008

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Cinema/estréias - Crítica/"O Sol"

Belo filme do russo Sokurov questiona tempo e imagem

Diretor aborda rendição japonesa na Segunda Guerra em longa de ritmo espaçado

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"O Sol" não é um filme em que tudo acontece rápido. Feita a advertência, será o caso de observar que quem mais tem a ganhar vendo este filme é o espectador para quem filmes são coisa que deve correr às pressas.
Porque tudo neste filme de Alexander Sokurov trata da dissociação (e da busca de adequação) entre gestos e palavras, expressão física e discurso. Estamos no Japão, no fim da Segunda Guerra, e o imperador Hiroito (o sol do título) deve se ocupar da inevitável rendição de seu país face às forças aliadas.
O Japão é, por si, um país que desenvolveu no mais alto grau uma ritualística que intermedeia as relações humanas. Um gesto de mão ou uma mesura com a cabeça são coisas que têm, por si, significado preciso.
Além disso, trata-se de estabelecer contato com uma cultura bem diferente. Para ficar num exemplo lancinante: enquanto o povo japonês vê no seu imperador um deus encarnado, os fotógrafos dos EUA o chamam de "Charlie" (porque o acham parecido com Charlie Chaplin).
Não por acaso, o traço mais marcante da gestualidade de Hiroito é um tique em que sua boca se move sem pronunciar nenhuma palavra. É dessa dissociação entre som e imagem que "O Sol" se ocupa, mais de que qualquer outra coisa.
Entre nós, esse tipo de partição é verificável em situações que chamamos de "saia justa": quando, por qualquer motivo, não sabemos, por exemplo, o que fazer com as mãos. Nesses momentos recorremos a gestos convencionais (como, digamos, cumprimentar um inimigo), percebemos a funcionalidade da convenção (o quanto é indispensável à vida social) e seu caráter de artifício. Tudo se torna questionável: tanto o gesto como a hipótese de não fazê-lo, ou a sombra repulsa no olhar que desmente o aperto de mão.
Um filme que trate desses assuntos passa, é claro, pelo difícil entendimento entre Hiroito e o general MacArthur, comandante das forças de ocupação. Ambos têm situação delicada a gerenciar: Hiroito deve renunciar à condição divina para permanecer imperador; MacArthur deve impor sua lei ao Japão com o maior tato possível.
Não raro, nota-se o quanto é doloroso o contato (quando Hiroito alude às bombas atômicas; e MacArthur, em resposta, cita o ataque a Pearl Harbor).
Tudo leva o filme a se organizar em torno de tempos lentos, que são, de resto, os preferidos do diretor. "O Sol" é um belo filme em que ainda o rebaixamento cromático e a luz subexposta nos trazem a esse trabalho em que Sokurov fala com desenvoltura do tempo dos homens e do tempo das imagens.


O SOL
Produção:
Rússia/França/Itália/Suíça, 2005
Direção: Alexander Sokurov
Com: Issei Ogata, Robert Dawson
Onde: em cartaz no Frei Caneca Unibanco Arteplex
Avaliação: bom


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