São Paulo, sábado, 23 de agosto de 2008

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JOSÉ GERALDO COUTO

Geléia geral


Nos olhos agrestes de Marta brilha a gana infinita de superar séculos de desequilíbrios e mazelas

"NA GELÉIA geral brasileira, alguém tem de exercer a função de medula e osso." A célebre frase do poeta Décio Pignatari me veio à lembrança quando vi Marta se desdobrar em campo contra as americanas na final olímpica do futebol feminino.
A maior futebolista do mundo defendeu, atacou, deu carrinhos, fez jogadas espetaculares, chutou de bico. Foi ao mesmo tempo arco e flecha, artista e carregadora de piano. Marta teve que buscar compensar com vontade, destreza e imaginação as carências de todo um país. País que, entre inúmeras coisas, não tem estrutura minimamente decente para a prática do futebol feminino.
As americanas, alimentadas desde o berço a waffles, iogurte e aveia, vinham de equipes universitárias. Tinham frieza e tranqüilidade dos habituados a vencer, ou antes, dos que já nasceram vencedores, dos que venceram antes de o jogo começar.
Marta, ao contrário, vinha do mais remoto sertão de Alagoas. Nos seus olhos de fera, faiscava uma fome ancestral. Tinha séculos de espera nas contas das suas costelas, diria o cineasta e poeta Ruy Guerra. Espera do quê? De um momento de redenção, de fartura, de plenitude. De uma virada que fizesse o sertão virar mar e o mar virar sertão.
O que nos seduz e comove em Marta não é o destino humilde, de coitadinha (por mais que a Globo nos impinja o constrangimento de ver sua mãe sertaneja chorando), mas sim o contrário: a gana com que exerce o seu direito de brilhar, de cobrar o seu lugar ao sol, de mostrar em rede mundial que pratica sua arte melhor do que ninguém.
Marta não quer bolsa-família, nem paternalismos de tipo algum. Como Luiz Gonzaga, ela sabe que uma esmola, a um pobre que é são, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão. Quer tomar à força o que lhe roubaram antes mesmo que ela nascesse. Quer a felicidade plena.
Quer o ouro do mundo.

Bola murcha
Em contraste com o empenho e o brilho das mulheres, o futebol do time masculino ficou parecendo ainda mais mesquinho, para usar a feliz expressão de Maradona.
Ronaldinho caiu na armadilha de Ricardo Teixeira e da mídia chapa-branca, acreditando que poderia arrasar mesmo fora de forma e sem ritmo de jogo. Foi sucesso de público e campeão de autógrafos na Vila Olímpica. Triste consolo.
Já Dunga acreditou ser possível começar a carreira de técnico pelo topo, dirigindo a equipe mais gloriosa do mundo. No fim das contas, o bronze foi até bom demais.
Mas nada se perde totalmente.
Apesar da frustração, alguns atletas mostraram que podem e devem ser aproveitados na seleção principal: Hernanes, Lucas, Anderson, Rafinha, Marcelo. Isso se Dunga se dispuser a aposentar um punhado de brucutus. Ou então, melhor ainda, se ele se auto-aposentar.

Talento e garra
O argentino Messi está para o futebol masculino como Marta está para o feminino, conjugando talento e garra na mais alta intensidade. Ambos mostram que, para conquistar resultados, não é preciso ser tacanho, e que, para ser artista, não é preciso usar salto alto.

jgcouto@uol.com.br


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