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O ano milagroso
Avesso à autoridade quando jovem, Einstein desafiou a intuição e a ciência
estabelecida para produzir, há cem
anos, três artigos que reinventaram luz, tempo, espaço e a natureza da matéria
Como um examinador de patentes falido estremeceu os alecerces da física
Reprodução
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Albert Einstein, em fotografia feita provavelmente em 1905 |
Marcelo Gleiser
Colunista da Folha
Em 1905, um obscuro físico de 26
anos, dividindo seu tempo entre a
filha recém-nascida e um emprego como examinador de patentes
de terceira classe em Berna, na
Suíça, publicou uma série de artigos que revolucionaram a física.
São cem anos desde o "ano miraculoso" de Einstein e 50 desde a
sua morte. Em 2005, o Ano Mundial da Física, o mundo celebra a
vida e obra desse homem que simboliza a imagem do "gênio" na
cultura popular, eleito pela revista
"Time" o "homem do século".
É irônico que o nome Einstein
invoque a visão de um velho bonachão e excêntrico, de cabelos
brancos despenteados, rosto
enrugado e olhos melancólicos,
completamente diferente do jovem de 26 anos determinado a
deixar sua marca na ciência. Este é
o Einstein que nos interessa,
amante de longas discussões em
bares com amigos, entusiasta da
música, charmoso e bem-apessoado, rebelde e irreverente.
Uma das características da personalidade de Einstein era sua
aversão à autoridade imposta.
Um de seus professores de ensino
médio previu que "Herr Einstein
não vai dar em nada".
Einstein recebeu seu diploma
pelo Instituto de Tecnologia de
Zurique em 1900 e apenas em
1902 conseguiu sua posição como
examinador de patentes. Durante
noites mal-dormidas e intervalos
em seu trabalho, Einstein iria arquitetar a nova física do século 20.
Se a atitude iconoclasta prejudicou sua busca por uma posição
acadêmica, foi imprescindível para a sua ciência: o jovem Einstein
estava determinado a injetar sangue novo na física, mesmo que isso significasse criticar a venerável
estrutura da ciência de seus dias.
A ciência em crise
As duas últimas décadas do século 19 foram difíceis para os físicos. Uma após outra, descobertas
experimentais questionavam o
saber da época. Três delas estão
diretamente ligadas aos artigos
que Einstein publicou em 1905.
Em 1887, o grande físico alemão
Heinrich Hertz mostrou que a luz
era uma onda eletromagnética,
conforme havia previsto James
Maxwell. Ficou claro também que
a luz visível representa apenas
uma pequena fração do amplo espectro de ondas eletromagnéticas. Outras incluem a radiação infravermelha, a ultravioleta e os
raios X. Se toda onda é a propagação de uma perturbação através
de um meio material -as ondas
do mar propagam-se na água, as
de som, no ar-, a luz também
deveria ter o seu meio. Maxwell e
outros sugeriram que a luz fosse
ondulações no éter, um meio invisível que permearia todo o cosmo.
Se o éter existe, deveria ser detectável. Em 1887, os americanos
Albert Michelson e Edward Morley desenharam um experimento
para demonstrar a existência do
éter. A idéia era simples: imagine
que você esteja em um carro conversível em um dia sem vento. Se
o carro não anda, você não sente
nada. Quando o carro começa a se
mover, você sente o vento contra.
Quanto maior a velocidade do
carro, mais forte o vento. Se você
atirar uma bola contra o vento,
sua velocidade será afetada por
ele: quanto maior ela for, menor a
velocidade da bola.
No experimento de 1887, o carro era a Terra e a bola, um raio de
luz. Se o éter existe, quando a luz
apontar na direção do movimento da Terra em torno do Sol, sua
velocidade será menor do que na
direção perpendicular ou em
qualquer outra. Para a surpresa
de todos, o experimento não detectou qualquer diferença nas
duas direções. A velocidade de
propagação da luz era a mesma,
cerca de 300 mil quilômetros por
segundo. Será que o éter não existe? Ou será que a teoria da luz como onda está errada?
No mesmo ano em que mostrou que a luz é uma onda eletromagnética, Hertz descobriu outro
efeito intrigante: certos tipos de
luz podem fazer faíscas elétricas
saltarem de placas metálicas.
Hertz inicialmente achou que
apenas a luz ultravioleta poderia
causar o efeito, que mais tarde ficou conhecido como efeito fotoelétrico. Por exemplo, luz amarela
ou vermelha, de freqüências menores do que as da azul e ultravioleta, não provocam faíscas. Vários
cientistas tentaram inutilmente
explicá-lo usando a teoria de
Maxwell. Mais uma vez, o laboratório passava a perna nas teorias
da época. A solução que Einstein
propôs para resolver o mistério, a
única que considerou "revolucionária" em sua vida, lhe valeu o
Prêmio Nobel de 1921.
O terceiro desafio para os físicos
veio da botânica. Em 1827, o inglês Robert Brown observou que
grãos de pólen boiando em água
movimentam-se em um misterioso ziguezague como se estivessem
sendo quicados por forças invisíveis. Brown chegou a suspeitar
que seu achado tinha algo a ver
com o enigma da vida. Mas suas
suspeitas iniciais foram rapidamente desfeitas quando observou
que grãos de matéria inanimada,
incluindo pedaços minúsculos de
diversas rochas e até amostras
provenientes da Esfinge egípcia,
dançavam tão animadamente
quanto os grãos de pólen.
Dois padres franceses sugeriram que o ziguezaguear tinha algo
a ver com a natureza atômica da
matéria, mas nada de concreto foi
proposto. Na época, não se aceitava que a matéria fosse feita de átomos. Alguns desconfiavam que
átomos existiam, mas outros, como o influente Ernst Mach, alegavam que, sendo a física uma ciência empírica, apenas aquilo que
pode ser medido e detectado pode
existir. Como átomos não podiam ser vistos, sua existência não
poderia ser confirmada. A razão
do "movimento browniano" continuou desconhecida.
O 1º ARTIGO: PACOTES DE LUZ
No dia 17 de março de 1905, o
prestigioso periódico "Annalen
der Physik" (Anais da Física) recebeu um manuscrito com um título peculiar: "Sobre um ponto de
vista heurístico concernindo a geração e conversão de luz".
Segundo o Aurélio, "heurístico"
é um conjunto de regras que visa à
resolução de um problema. A essa
definição deve-se adicionar que
as regras não têm uma justificativa; são, no senso coloquial, um
"chute". Qual foi o chute de Einstein? Que a luz não se comporta
sempre como onda; sob certas
condições, pode ser vista como
sendo composta por pequenos
pacotes, ou "quanta", o plural de
quantum (do latim "indivisível").
O conceito de quantum é familiar; por exemplo, o quantum do
sistema monetário brasileiro é o
centavo. Com a luz ocorre o mesmo. Cada cor, cada freqüência
tem o seu quantum, que mais tarde ficou conhecido como fóton.
Quando átomos absorvem ou
emitem luz, o fazem absorvendo
ou emitindo fótons.
Einstein teve a coragem de aplicar à luz a idéia de quantum, proposta cinco anos antes por Max
Planck para explicar como átomos recebem ou emitem energia.
Sua explicação do efeito fotoelétrico era simples: imagine uma
mesa com bolas de tênis espalhadas pela sua superfície. As bolas
de tênis são os elétrons na placa
metálica. O fóton seria outra bola,
atirada contra a superfície. Fótons
com energias altas o bastante podem arrancar um elétron da placa. Ao perder um elétron -de
carga negativa-, a placa fica com
uma carga positiva, explicando
sua eletrificação. Se a bola for atirada com pouca energia, não poderá arrancar outra da mesa. Isso
é o que ocorre com a luz amarela
ou vermelha. Já os fótons ultravioleta, cheios de energia, colidem
com os elétrons, atirando-os longe. Com sua idéia, Einstein propõe a quantização da luz, indo
contra os ensinamentos da época.
A luz passou a ser tanto onda como partícula, sua natureza uma
testemunha da bizarra natureza
do mundo do muito pequeno.
O 2º ARTIGO: ÁTOMOS SÃO REAIS
O segundo artigo, recebido
pelos "Anais da Física" no dia 11
de maio, tratava do movimento
browniano. Mais uma vez, Einstein propõe uma solução iconoclasta. Segundo ele, o ziguezaguear das partículas de pólen e
outras se dava devido a constantes colisões com as moléculas do
líquido. Einstein obteve uma fórmula em que calculava a variação
da posição da partícula em suspensão em função do tempo,
mostrando como ela dependia do
tamanho da partícula e da temperatura e viscosidade do líquido.
Seu argumento era baseado explicitamente na existência real das
moléculas do líquido e na taxa de
colisão entre elas e as partículas
em suspensão. Em 1908, o francês
Jean Perrin confirma espetacularmente a fórmula de Einstein e a
existência de um mundo invisível
repleto de moléculas e átomos em
colisão constante.
O 3º ARTIGO: A RELATIVIDADE
Quando garoto, com 16 anos,
Einstein teve uma das suas muitas
visões criativas: o que veria se pudesse cavalgar ao lado de uma onda de luz? Essa pergunta, baseada
na questão do movimento relativo (dele e da onda), fermentou
durante dez anos em sua cabeça.
Quando a onda não é de luz, a coisa é simples: se tivermos a mesma
velocidade, veremos a onda estática, como é do conhecimento de
todo surfista. Mas o eletromagnetismo de Maxwell proibia isso.
O que fazer? Abandonar a sólida
teoria de Maxwell parecia inviável. Einstein novamente propõe
algo extraordinário: a luz é diferente de tudo o que existe. Nada
pode viajar mais rápido do que
ela. E ela tem sempre a mesma velocidade, independente da velocidade de sua fonte.
Como assim, pergunta o leitor?
E a história do éter? A conseqüência imediata da idéia de Einstein,
que chamou de princípio da constância da velocidade da luz, é que
o éter não existe: a luz não precisa
de meio material para ondular.
Einstein foi além. Para falar de
movimento, a mudança da posição de um objeto no espaço, é
preciso definir tempo e espaço.
Na época, todos aceitavam os
conceitos newtonianos de espaço
-a arena inerte onde as coisas
acontecem- e de tempo -sempre fluindo igual para todos.
Einstein mostrou que dois observadores em movimento relativo discordam do que seja um metro ou um segundo: objetos encolhem na direção de seu movimento e o tempo passa mais devagar.
Quanto mais rápida a velocidade
do objeto, menor ele parece;
quanto mais rápido o relógio,
maior o intervalo entre um tique e
um taque. Não vemos carros encolhendo nas ruas ou relógios
atrasados após uma viagem porque os efeitos previstos por Einstein só são perceptíveis a velocidades próximas à da luz.
É comum falar que a teoria da
relatividade diz que "tudo é relativo". Na verdade, a teoria é baseada em um absoluto -a velocidade da luz. O que é relativo é nossa
percepção da realidade. Einstein
deu maleabilidade ao espaço e ao
tempo, destruindo sua rigidez.
Fez com a física o que Picasso e
Braque fizeram com a pintura.
O primeiro artigo sobre relatividade foi recebido pelos "Anais da
Física" no dia 30 de junho. Em 27
de setembro Einstein envia outro,
onde deriva sua famosa fórmula
E=mc2: matéria contém energia (e
muita, devido à enorme velocidade da luz, o c da fórmula) e energia pode gerar matéria. Uma conseqüência disso é que processos
nucleares podem converter matéria em quantidades enormes de
energia. Esse é o princípio da geração de energia do Sol ou da fissão nuclear das bombas atômicas.
Toda grande descoberta tem um
lado um luz e um lado sombra.
Qualquer um desses resultados
traria glória imortal ao seu autor.
Que tenham sido propostos no
mesmo ano pela mesma pessoa é
mesmo algo meio miraculoso.
Einstein redirecionou a física de
sua época. Um de seus ídolos era
Michael Faraday, o pioneiro cujos
experimentos permitiram a Maxwell obter as equações do eletromagnetismo. Faraday escreveu
que "nada é tão maravilhoso que
não possa existir, se admitido pelas leis da natureza". Einstein foi o
mago que nos permitiu vislumbrar algumas dessas maravilhas.
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