Serafina
Colunista viaja pela ferrovia Transiberiana no ocaso da URSS
Ilustração Caco Neves | ||
Faz 24 anos desde que estive na China pela última vez. Era agosto de 1991 e Pequim era o ponto de partida da gravação de um documentário sobre a ferrovia Transiberiana que dirigi para a RAI, a televisão estatal italiana. No documentário, eu e uma pequena equipe seguíamos mascates chineses que viajavam 9.000 km de Pequim a Moscou fazendo pé-de-meia com contrabando de tênis, bolsas-pochete, óculos escuros e outras falsificações de marcas famosas.
Em todas as estações, atravessando a imensidão da Sibéria no sentido oposto aos milhões de coitados que Stalin mandou para a morte nos gulags (campos de trabalhos forçados), a história era a mesma: muamba chinesa fajuta disputada a tapa por russos desesperados, com aquela fome braba de grife que só quem viveu em país comunista conhece. (Já vou avisando, para evitar mal-entendidos, que sou contra o impeachment.)
Foi uma aventura absurda. Um dia antes da viagem, ainda em Roma, fomos ao consulado chinês pegar os vistos quando vimos que a programação de TV havia sido interrompida para anunciar um golpe de Estado na União Soviética. Gorbachev havia sido derrubado! Durante a viagem, de sete dias e oito noites, ninguém no trem sabia dizer se até Moscou seguíamos ou não ao encontro de uma guerra civil.
Naquela tensão toda, o fiscal do trem, um bolchevique velha-guarda, encanou que nossa equipe era composta por contrabandistas disfarçados de documentaristas. Em Novosibirsk, fomos detidos pela polícia até convencermos o delegado de que tínhamos levado as camisas da seleção brasileira só para dar de presente.
Aquela guerra não aconteceu do jeito que imaginávamos e Gorbachev foi reconduzido ao poder alguns dias depois. Mas outras guerras desde então —como agora na Síria, no Iraque, no Afeganistão e na Ucrânia— tem suas raízes fincadas naquele momento histórico e já estavam anunciadas no rosto angustiado da senhora russa com dentes de ouro que, numa estação perto do lago Baikal, veio à plataforma tentando desesperadamente trocar uma lata de atum por qualquer coisa que pudesse dar de presente de casamento para a filha.
Antes da era do papa Wojtyla, Margaret Thatcher e Ronald Reagan, não existiam times de futebol anunciando bancos, companhias aéreas ou redes de esfirraria em suas camisetas. Auditórios não tinham nome de companhias telefônicas e aeroportos do mundo inteiro ainda não tinham sido transformados em shopping centers.
Olhando pela janela do hotel onde estou hospedado, vejo uma Pequim sem reconhecer minimamente a China tão cheia de Rolls Royce e lojas do Ermenegildo Zegna (autênticos) e me pego pensando que o mundo antes daquela semana de agosto de 1991 já era sem dúvida um lugar absurdo, violento e frívolo. Mas, que sem a gente perceber, ele foi aos poucos ficando bem mais absurdo, violento e frívolo.
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