Pinheiros, Vila Mariana e Lapa são os campeões de demolição em SP

São Paulo é "um imenso pergaminho, cuja escrita é raspada de tempos em tempos, para receber outra nova", já dizia o historiador de arquitetura Benedito Lima de Toledo, em "São Paulo: Três Cidades em Um Século", de 1981.

O livro mostra como as casas de barro foram substituídas pelas construções de tijolos e, pouco depois, pelos edifícios altos de concreto armado.

Editoria de Arte

Esse processo de reconstrução constante é arraigado na cidade e segue firme, embora concentrado em algumas áreas. Dados obtidos com exclusividade pela sãopaulo mostram o que o paulistano já intuía: as regiões de Pinheiros, Vila Mariana e Lapa são as campeãs de demolições na capital.

Em toda a cidade, foram 7.882 imóveis derrubados nos últimos sete anos, quase três por dia (2,88). Na área da Subprefeitura de Pinheiros (zona oeste), 1.372 imóveis vieram abaixo desde 2007, ano anterior ao começo do boom imobiliário.

Lá ficam lugares como a bola da vez Vila Madalena e a região da Faria Lima, que foi alvo de uma transformação recente: o projeto de requalificação do largo da Batata.

Embora não tenha recebido nenhum grande projeto, a Vila Mariana quase alcança Pinheiros: foram 1.258 imóveis que desapareceram.

Mesmo terceira no ranking da destruição (698 imóveis), a Subprefeitura da Lapa, que inclui bairros como Barra Funda, Perdizes, Pompeia e Vila Leopoldina, foi a primeira em número de lançamentos no mesmo período.

A diferença na Lapa tem uma explicação: em lugares como a Vila Leopoldina, que se verticalizou na última década, há terrenos grandes, antes ocupados por fábricas. Assim, com a demolição de apenas um imóvel é possível construir um número grande de apartamentos. O mesmo ocorre na Mooca.

Até o centro entrou na mira das marretas. De 2007 a 2013, a região teve 56 demolições por ano, em média. Só neste ano, de janeiro a junho, 51 imóveis já foram abaixo.

SOBRADOS EM EXTINÇÃO

A intensidade das transformações suscita protestos onde a demolição é alta. Na rua Ministro Gastão Mesquita, em Perdizes, uma casa e um sobrado ostentam grandes placas de uma construtora. Quem presta atenção ao slogan da empresa nota o rancor dos moradores, que o transformaram com uma intervenção. A frase "Tradição em Perdizes" virou "Tradição em destruir Perdizes", com letras grafadas a canetão.

Por ali, as tradicionais casinhas com jardins e muros baixos, revestidos de pedra, começam a entrar em extinção. Os sobrados coloridos e os predinhos sem elevador também estão sumindo da paisagem, atiçando a nostalgia dos moradores.

O produtor de audiovisual Eduardo Abramovay, que integra um movimento contra a verticalização, é um deles. "Parece que a cidade toda vai virar a Vila Nova Conceição", diz. "Hoje você vê de dois a três prédios sendo construídos em cada quarteirão. As ruas estão ficando sombreadas e o bairro está sendo descaracterizado, ficando anônimo."

Pela internet, paulistanos saudosistas relembram a metrópole de outros tempos em páginas de redes sociais, como a Memórias Paulistanas, e em sites como o São Paulo Antiga, que conta a história de imóveis e registra suas demolições.

Há duas semanas, a arquiteta e artista plástica Mariana Pabst Martins, 55, publicou no grupo virtual uma foto sua de 1967 em frente à casa onde viveu, no Jardim Paulista.

"As casas eram de tijolinho com borda branca e janela verde, o que era uma referência. Hoje, essa construção constante faz com que ninguém mais tenha memória e uma ligação afetiva com a cidade", afirma ela, que agora vive no Sumaré, na zona oeste.

O historiador Benedito Lima de Toledo já havia resumido bem essa perda de memória em seu livro. "A velocidade [da reconstrução] é tão grande a ponto de apagar, no espaço de uma vida humana, o ambiente de uma geração anterior: os jovens não conhecem a cidade onde, jovens como eles, viveram os adultos".

A Vila Madalena da memória de Mariana, onde moravam muitos estudantes da USP na década de 1970, não existe mais. "Naquela época, o problema da Vila era não ter bar. Se conto essa história vão achar que é piada", diz. "Não sou contra a verticalizar. Sou contra prédios de 30 andares em qualquer lugar."

Editoria de Arte/Folhapress

Na Vila Mariana, uma entidade de bairro processou incorporadoras que ultrapassaram o limite de construção. "Tivemos o bairro desconfigurado por essas empresas", conta Oswaldo Baccan, presidente da associação de moradores local. "Hoje temos problemas com calor e com fluxo de água baixo."

O grupo foi criado em 2001 para impedir a demolição do Instituto Biológico, na avenida Conselheiro Rodrigues Alves. Com as reivindicações, o imóvel foi tombado pela prefeitura.

Muitas vezes, a troca dos sobrados por prédios não traz grande diferença quando a questão é o adensamento populacional tão defendido por urbanistas para ampliar o uso da infraestrutura (como a de transportes) nos locais já bem desenvolvidos da cidade.

José Eduardo de Assis Lefèvre, pesquisador da história da arquitetura da FAU-USP e morador de Perdizes, dá um exemplo. "Para construir um prédio na frente de casa demoliram três casas grandes, três de vila, mais seis sobrados. Ou seja, 18 imóveis para fazer dois prédios com uns trinta apartamentos de alto luxo."

DE BAIRRO RESIDENCIAL A BAIRRO CENTRAL

Mas por que lugares consolidados como esses são reconstruídos enquanto outras áreas ainda não se desenvolveram completamente?

O bairros passam por duas gerações de construção. Em um primeiro momento, estão na periferia e são bairros residenciais, explica o professor da FAU-USP Renato Cymbalista, especialista em história do urbanismo. Como ocorreu com Pinheiros, Vila Mariana e Lapa, que foram urbanizados nos anos 1920. "Mas a cidade se transforma, cresce, e esses bairros, antes periféricos, viram locais centrais".

Com a mudança, os bairros passam a estar perto dos empregos e a infraestrutura vai chegando, diz o urbanista. Pinheiros, após a construção da Faria Lima, nos anos 1980, é um exemplo. Essas mudanças, somadas à chegada dos transportes de massa, tornam as áreas interessantes para novos investimentos. "Onde havia sobradinhos, passa a haver apartamentos."

Pela mesma lógica, a construção da avenida Eng. Luiz Carlos Berrini ajuda a explicar o grande número de demolições na subprefeitura de Santo Amaro (641), na zona sul.

Lá, os moradores apelaram a um pedido de tombamento para frear a verticalização do bairro Cidades Monções, no Brooklin. A demanda foi negada pela prefeitura no começo deste ano, pois o bairro planejado estava descaracterizado.

Se por um lado a dinâmica da cidade impulsiona as transformações, por outro a legislação as permite. "Em São Paulo existe essa possibilidade de demolir para erguer algo maior no mesmo lote", diz Levèfre.

"Nossa legislação tem favorecido historicamente essa mudança. O centro já foi ocupado por casas, que foram substituídas por prédios. Em Paris, na chamada região entre muros, o padrão são construções de oito andares. Quando teve ameaça de verticalização, houve protesto. O edifícios altos, de escritórios, foram feitos fora dessa parte da cidade", exemplifica o professor da FAU-USP.

PLANO DIRETOR

A possibilidade de erguer algo maior no mesmo lote, mencionada por Lefèvre, é exatamente o que vai se intensificar como resultado do novo Plano Diretor. O incentivo para construir perto dos meios de transporte é a grande aposta da nova lei para resolver os problemas de mobilidade.

Quando estiver em vigor, o entorno de corredores de ônibus e estações de trem e metrô poderão receber edifícios com área equivalente a quatro vezes o tamanho do terreno. Nesses lugares, prédios de alto luxo devem se tornar mais escassos, já que o tamanho limite dos apartamentos será de 80 m².

O plano, no entanto, contempla parte dos anseios de uma população, representada por entidades como o Defenda São Paulo, que congrega mais de cem associações de moradores.

Nos miolos dos bairros, essa lei vai restringir a altura dos novos edifícios a oito andares (exceto em quarteirões cuja área de prédios já ultrapassa 50%). Além disso, haverá pagamento de taxa para construir.

A mudança de padrão dos bairros pode ser positiva, desde que três premissas sejam observadas, afirma Renato Cymbalista, da USP.

A prefeitura precisa garantir que o aumento de densidade populacional ocorra, e que existam prédios para rendas mais baixas.

Outra medida importante é estimular o surgimento de espaços de convivência, por meio de boas calçadas e estabelecimentos embaixo dos prédios, em vez de muros e garagens apenas.

"Infelizmente essa não tem sido nossa história. Nas últimas quatro décadas, quando a verticalização chegou, ela destruiu a urbanidade. Com o novo plano, há uma chance de ser diferente. Mas é só uma chance."

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