São Paulo, Domingo, 26 de agosto de 2012

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FINA

A MÃE DE SANTO FRANCESA

por ELVIRA LOBATO, do Rio

Ex-mulher de diplomata, ela descobriu sua alma africana no Brasil. No final dos anos 1950, iniciou-se no candomblé, onde ganhou o nome de Omindarewá (Água Bonita)

O terreiro de candomblé evidencia a elegância da mãe de santo. A casa é cercada por plantas tropicais, jabuticabeiras, mangueiras e outras árvores frutíferas. As paredes brancas, adornadas com máscaras e objetos africanos.

Para além da residência, há o espaço onde são realizadas as festas e uma fileira de construções brancas que são os quartos dos orixás, onde ocorrem os rituais de iniciação dos filhos de santo e a consulta aos búzios.

Estamos no terreiro Ilé Asé Atará Magbá, em Santa Cruz da Serra, na Baixada Fluminense. A mãe de santo é Gisele Cossard, ou Omindarewá, que significa água bonita, uma francesa de 89 anos que nunca deixa de vestir suas roupas africanas.

Apesar de morar há 40 anos no Brasil, Gisele ainda reage como europeia a situações cotidianas. "Na hora da refeição, quero que todos que estão em casa se sentem à mesa comigo. Mas, no Brasil, cada um come quando quer."

MULAMBAS

Outra estranheza é com a falta de vaidade das mulheres dentro de casa. Gisele só sai do quarto com brincos, anéis, pulseiras e vestimenta africana impecável. Também não abre mão de pintar as unhas.

"O que me revolta nas mulheres brasileiras é que ficam com roupa desleixada e descabeladas em casa. Nunca vi minha mãe sem salto, era inadmissível."

Mas, após sofrer várias quedas, Gisele deixou de se paramentar demais para as festas religiosas porque o peso das anáguas tira sua estabilidade. Para se manter magra, não come arroz com feijão e apela para a culinária francesa no dia a dia. Mas adora comida africana, feijoada nos dias de festa, pimenta, cerveja e vinho.

Ela montou a casa de candomblé em 1973, estimulada pelo pai de santo Balbino Daniel de Paula (filho de Mãe Senhora, do renomado Ilé Axé Opô Afonjá, de Salvador) e pelo amigo Pierre Verger, o fotógrafo francês que se tornou estudioso da cultura afro-brasileira depois de conhecer e de se apaixonar pela Bahia.

Gisele nasceu no Marrocos, onde o pai militar prestava serviço, e passou a infância e a mocidade em Paris. Viveu os horrores da Segunda Guerra Mundial e fez parte da Resistência Francesa, movimento dos rebeldes "partisans" que não aceitavam a submissão do Estado aos nazistas.

Ela conta que a pior lembrança do período não foi do medo da morte, mas da falta de comida. Até hoje, não consegue deixar sobras no prato e não admite desperdícios.

Terminada a guerra, em 1945, casou-se com um professor que conheceu na Resistência Francesa. Tiveram dois filhos. Em 1949, o marido foi nomeado diretor de Educação em Camarões, então colônia francesa. Depois, a família viveu no Chade, ao sul do Saara.

Ela só veio a descobrir os orixás no Brasil, para onde o marido foi transferido, em 1959, como conselheiro cultural da Embaixada da França no Rio de Janeiro.

"Senti a presença africana nas cores do povo, no gingar das mulheres, no cheiro do dendê e na exuberância da música e das danças", descreve em seu livro "Awô, o Mistério dos Orixás".

Com Abdias Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro, correu morros e subúrbios e acabou no terreiro do pai de santo Joãozinho da Gomeia.

"Caí no chão, sem domínio de mim mesma. Nesse momento, começou minha vida com os orixás."

Em 1963, a família voltou à França. Gisele separou-se do marido e fez doutorado na Sorbonne sobre candomblé.

Retornou em definitivo para o Brasil em 1972, como conselheira pedagógica do Serviço Cultural Francês, no Rio de Janeiro, mas encontrou as coisas mudadas: seu pai de santo, Joãozinho da Gomeia, havia morrido.

IEMANJÁ

Um acidente de carro, no ano seguinte, mudou sua trajetória no candomblé. Sem poder andar, ela incorporou Iemanjá e dançou durante o transe. O pai de santo responsável, Balbino de Paula, virou seu mentor.

Santa Cruz da Serra é um povoado a cerca de 40km do centro do Rio. Gisele escolheu o local por causa da água e da mata, essenciais nos rituais afro. Quando chegou lá, nos anos 1970, só havia sítios, e ela criou cabras e galinhas para vender aos terreiros.

Nos últimos anos, uma população pobre se estabeleceu na região. O terreiro da francesa, como é conhecida na região, foi cercado por igrejas evangélicas, que não veem com bons olhos o candomblé.

SEGURANÇA NO TERREIRO

Gisele continua encantada com o Brasil. Mas não como nos primeiros tempos, por causa da violência. Nos últimos dez anos, sofreu três assaltos.

O último foi o pior. Os assaltantes entraram drogados e enfiaram uma arma na boca do filho que mora com ela.

Depois disso, os portões passaram a ficar fechados, e ela contratou serviço de segurança.

Apesar de lamentar a violência, Gisele não hesita em dizer que é feliz no Brasil e que não se readaptaria a Paris. "O parisiense tem uma agressividade que eu só percebi depois de viver aqui."


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