São Paulo, domingo, 17 de maio de 2009

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HISTÓRIA

De irmão para irmã

Marcelo dos Santos, 41, submeteu-se ao risco de morte e de sequelas e doou 60% do fígado à irmã doente, Camila

Marlene Bergamo/Folha Imagem
4/5, 16H10
Marcelo recebe alta e passeia com a mãe e a irmã pelo hospital; ambos passam bem


JULLIANE SILVEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Há seis meses, os três irmãos da advogada Camila Mariano dos Santos, 29, tiveram uma discussão. Naquele dia, quem venceu a "briga" foi o mais velho, Marcelo dos Santos, 41. Era ele que se submeteria ao risco de morte e de ter alguma sequela pós-operatória para doar 60% de seu fígado à irmã.
Camila sofria de colangite esclerosante, uma doença rara no fígado que causava coceira intensa, dores nas articulações e colesterol muito elevado -as taxas de colesterol "ruim" chegavam a 400 mg/dL (o nível desejável é inferior a 100 mg/dL).
Após passar seis anos em busca do diagnóstico, ouviu do médico que a doença era progressiva e sem cura. Como opção, havia quatro remédios que poderiam aliviar os sintomas; se não funcionassem, a única solução seria o transplante.
As drogas, tomadas durante um ano, não surtiram efeito. O médico lhe explicou que seria quase impossível realizar um transplante de fígado de cadáver. Apesar de comprometer muito a vida de Camila, a doença não contribuía para aumentar seu Meld (modelo para doença hepática terminal, na sigla em inglês), fator que determina a prioridade de um paciente na fila de transplantes.
Esse valor é calculado com três exames, que medem a função renal e a eficiência de o fígado excretar bile e de produzir fatores de coagulação.
Camila não apresentava alteração nesses quesitos, mas acordava de madrugada para entrar no chuveiro e aliviar a coceira. Sempre amanhecia com sangue no pijama e nos lençóis, de tanto se coçar durante o sono. "Chorava de raiva.
Às vezes me jogava no chão de tanto incômodo", lembra. O colesterol não baixava nem com dietas e ela usava botas de gesso por causa das dores articulares.
Quando souberam que Camila não teria um doador, os irmãos se prontificaram para doar o fígado. Marcelo, com sua autoridade de primogênito, impôs que começassem com ele os testes de compatibilidade.
Foram seis meses e três fases de avaliações de função de órgãos, análises psicológicas, exames de imagem e laboratoriais. Durante todo o tempo, os especialistas enfatizavam os riscos que ele corria: 0,5% de chance de morrer, 20% de ter algum problema após a cirurgia, cicatriz na barriga. Marcelo soube que havia casos de doadores que morreram. Ainda assim, permaneceu irredutível: só desistiria se houvesse algum impedimento médico.
"Tomei a decisão e não quis pensar muito. Acho que era uma coisa que tinha de ser feita e pensar nas consequências não adiantaria nada", conta.
Os outros pensavam por ele.
Durante a bateria de exames, era questionado por amigos e colegas do trabalho, que lhe perguntavam se teria coragem.
"Poucos falavam que fariam, poucos estão preparados. Existe uma certa ignorância, alguns pensam que é loucura."
Cirurgia
O transplante ocorreu em 27 de abril. Marcelo foi o primeiro a entrar na sala de cirurgia, para se submeter à ultima avaliação: abriram seu abdômen para ver se, de fato, não havia nenhum impedimento anatômico para retirar parte do órgão.
Com o bom prognóstico, Camila começou a ser operada.
Duas equipes cuidaram do doador e do receptor separadamente e, após 13 horas, o transplante foi concluído. Camila teve dores, fica cansada com facilidade, mas não sente mais coceira. Para ela, o mais difícil será ficar afastada de suas duas cachorrinhas por três meses, pois ingere remédios que baixam a imunidade para que não rejeite o órgão.
Seu irmão passou as primeiras 72 horas dormindo. Depois disso, tomou consciência dos efeitos da cirurgia: enjoo forte, vômitos, cansaço intenso, perda de oito quilos. "Eu estava pior do que minha irmã. Entrei saudável e saí com menos da metade do meu fígado. Já ela entrou doente", compara.
Marcelo, professor de educação física, já recuperou o peso, mas o cansaço persiste, assim como uma fome "incontrolável". Pretende retomar, nesta semana, as atividades administrativas de seu trabalho. "Todas as pessoas que me visitam têm me perguntado se eu faria de novo. Faria, é realizador ver minha irmã bem. Mesmo se ela não tivesse melhorado, valeria a pena ter tentado", diz.

Intervivos
Atualmente, é possível transplantar rim, parte do fígado e do pulmão e medula óssea de doador vivo. Mas, exceto no caso de medula, especialistas são resistentes ao transplante de órgãos intervivos.
O procedimento é realizado somente em último caso, se o risco de morte do doente supera muito os riscos que o doador corre. "É uma alternativa viável, mas não deve ser rotineira.
Há um potencial enorme de doações de falecidos e só precisamos do doador vivo porque faltam órgãos", diz Ben-Hur Ferraz Neto, coordenador da equipe de transplante de fígado do hospital Albert Einstein.
Parentes de até quarto grau podem se candidatar a doador -outras pessoas devem obter autorização judicial para doar.
No Brasil, foram realizados 121 transplantes de fígado intervivos em 2008, contra 1.054 de cadáver. No primeiro semestre daquele ano, havia 6.505 pessoas na fila de transplantes.


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