São Paulo, domingo, 31 de maio de 2009

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+Cultura

Japão pop show



AMADO PELOS FÃS, MAS ODIADO NO MUNDO LITERÁRIO DE SEU PAÍS, O ESCRITOR HARUKI MURAKAMI FALA DO FASCÍNIO POR "LOST", DO DESPREZO POR MISHIMA E EXPLICA SUA PAIXÃO PELA CORRIDA, TEMA DO NOVO LIVRO


JESÚS RUIZ MANTILLA

O ocidental que se aproxima de Haruki Murakami (1949) talvez se sinta atraído por alguma coisa que o carregue para mundos distantes. Mas, quando abrir qualquer um de seus livros e ler algumas linhas, terá uma surpresa.
Ele será seduzido pela proximidade dos personagens de Murakami, pelo fio finíssimo com que consegue ligar tudo o que preocupa, diverte e deprime o homem contemporâneo: a solidão que espreita em cada esquina, o amor, o desamor, o sexo e o desejo, a sensação de perda e a de não encontrar um lugar no mundo.
A música, que forma o pano de fundo e dá forma a sua obra, é tirada daquele que é o tesouro mais estimado de Murakami: uma coleção de 7.000 discos de vinil de jazz -sua grande paixão-, pop e clássicos.
Ele começou a escrever tardiamente, perto dos 30 anos, após ter sido proprietário de um clube de jazz em Tóquio. Escrevia para ele mesmo e para seus amigos, e pouco a pouco foi atraindo leitores nos cinco continentes. Pouco a pouco, e sem querer -a exposição pública é algo do qual tem horror-, foi se convertendo em um objeto cult global.
Assim, depois de alguns tantos romances, alguns volumes de contos e uma nova obra autobiográfica, "What I Talk About When I Talk About Running" [De Que Falo Quando Falo em Correr], Murakami alcançou seu objetivo: ser um corredor de longa distância.
Apreciador do surrealismo e da série "Lost", admirador de Scott Fitzgerald, John Irving, Manuel Puig e Vargas Llosa, diz, no entanto, não apreciar Yukio Mishima (1925-70). O escritor japonês é um dos ícones de que ele faz questão de fazer pouco caso, para escândalo dos guardiões da pureza na literatura de seu país.
"Não consegui nem sequer terminar muitos de seus livros", comenta, sem ânimo de polemizar demais. Murakami e o mundo das letras do Japão mantêm uma relação de ódio mútuo. Este detesta a mania do escritor de exibir referências da cultura popular ocidental, enquanto Murakami não suporta que o critiquem por não tratar a língua como uma pérola virgem.
Murakami se nega a aparecer na rádio ou televisão em seu país, apesar de já ter se convertido em guru para grande número de jovens -sobretudo depois de publicar "Norwegian Wood".
Muitos viram o livro como um "O Apanhador no Campo de Centeio" japonês, mas Murakami foge das comparações com o clássico de Salinger que inspirou o assassino de John Lennon.

 

PERGUNTA - De que o sr. tem mais orgulho -de seu bar em Tóquio, de sua performance em maratonas, de seus 7.000 discos de vinil, de traduzir Scott Fitzgerald ou de seus livros?
HARUKI MURAKAMI
- O que mais me orgulha é ter encontrado tantos leitores em todo o mundo. Escrevo há 30 anos, ou um pouco mais. Nos primeiros dez anos eu tinha poucos leitores. Escrevia para um grupo reduzido, quase só meus amigos. Não sei por que, mas os leitores foram aumentando.

PERGUNTA - Até o sr. se converter em um fenômeno global?
MURAKAMI
- Não é o que pretendo. Escrevo primeiramente para mim, para minha satisfação pessoal. Fazê-lo me dá felicidade. Depois vi que o que eu escrevia interessava a algumas pessoas, e isso foi se ampliando.

PERGUNTA - Mas, mais que seu exotismo, é sua proximidade que cativa. Quando o senhor abre a bolsa de uma japonesa e olhamos dentro dela, encontramos as mesmas coisas que poderiam estar na bolsa de uma adolescente em qualquer cidade grande.
MURAKAMI
- Quando escrevo uma história, não penso se ela irá encontrar eco junto a um leitor japonês ou chinês. Simplesmente me divirto escrevendo. As histórias que apresento me parecem naturais, não posso explicá-las. São muito íntimas, muito pessoais. Talvez seja exatamente isso que as torne globais. O que é preciso é tentar ser autêntico.

PERGUNTA - Ao mesmo tempo em que o sr. mergulha em si mesmo, sente que se aprofunda nos temas que mais preocupam o mundo?
MURAKAMI
- Não sei. Falo de mim. Para me conhecer melhor, vou cada vez mais ao fundo do poço, metaforicamente falando. Também gosto de quebrar paredes. Ir ao outro lado e farejar. Depois volto. Isso é escrever um romance. Sair em busca do obscuro, daquilo que você não conhece de si mesmo. Se é capaz de ultrapassar essas fronteiras, desarmado, pode se tornar alguém que interessa de maneira global e encontrar almas afins na Ásia, na África. Pode ser mais livre, além disso. Em meus romances, procuro fazer com que isso aconteça.

PERGUNTA - É por isso que o sr. gosta tanto de "Lost" e comprou uma casa na ilha onde a série é filmada?
MURAKAMI
- Sim, sim. Bom, gosto de "Lost" por isso e por outras razões. Gosto do mistério que cerca os personagens, que se vai descobrindo aos poucos. O mistério e o surrealismo. Mas o que mais me fascina é o inesperado. Gosto de fazer isso com meus escritos. Para que ninguém imagine o que pode acontecer. Além disso, acho que "Lost" é muito fiel ao sentido de seu título.

PERGUNTA - Se refere ao fato de que são seres perdidos e que essa condição agrada a muitos deles?
MURAKAMI
- Por exemplo. Embora muitos, como eu disse antes, gostariam de passar sobre os muros e retornar; outros, não, preferem ficar. Isso é algo que pode ser bom -essa fuga. Sou um escritor otimista e identifico esse otimismo, essa vontade de mudar, em muitos dos personagens de "Lost".

PERGUNTA - É por isso que detesta Mishima? Não o acha otimista?
MURAKAMI
- Não gosto de seu estilo.

PERGUNTA - Seu estilo literário ou sua maneira de ser?
MURAKAMI
- Como leitor, ele não me agrada. Não consegui chegar ao fim de muitos de seus livros.

PERGUNTA - Não seria porque, como grande escritor japonês de outra geração, o sr. sente a necessidade de matar o pai?
MURAKAMI
- Acho que não. É que não gosto de seus livros, apenas isso. Também não gosto de sua visão da vida e da política. Nada. Ele não me interessa em nada.

PERGUNTA - Esse desprezo por Mishima agravou sua distância do mundo literário japonês?
MURAKAMI
- Eles não gostam de mim. Sou diferente demais deles ou, pelo menos, diferente do que consideram que um escritor deve ser. Eles pensam que tudo o que se escreve deve ser subordinado à beleza de nossa língua, aos temas de nossa cultura. Não vejo as coisas assim -emprego a língua como ferramenta. Uma ferramenta que posso usar com muita eficácia, mas nada mais. É por isso que os críticos e os escritores me atacam. Não faço parte de nenhum grupo, e, no Japão, se supõe que você deva integrar algum grupo.
Por isso deixei meu país por alguns anos.

PERGUNTA - Essa rejeição o deixou furioso?
MURAKAMI
- Não, furioso não. Simplesmente me sentia estrangeiro em meu próprio país.

PERGUNTA - Mas agora o sr. se considera um japonês genuíno. O que é ser japonês nos dias de hoje?
MURAKAMI
- Penso que estamos à procura de uma identidade nova. Depois da Segunda Guerra Mundial, enriquecemos e vivemos bem até 1995, quando sofremos uma crise tremenda. Não tínhamos vivido nada semelhante em 40 anos.
Nesse período, pensávamos que a riqueza nos traria felicidade e satisfação. Ficamos tremendamente ricos, mas não éramos felizes. Agora nos estamos perguntando "o que devemos fazer? Qual é o caminho para a felicidade?".

PERGUNTA - O Japão viveu o prelúdio daquilo que o mundo está vivendo agora. Que conselho seu país pode dar ao Ocidente?
MURAKAMI
- Eu não saberia lhe dizer. O que sei é que, depois das crises, algo inesperado acontece com meus livros.
Depois de 1995, cada vez mais leitores começaram a apreciar meu trabalho no Japão. Depois do 11 de setembro, meus leitores aumentaram também nos EUA.
Na Rússia e na Alemanha aconteceu o mesmo.

PERGUNTA - O sr. é um escritor para tempos de crise?
MURAKAMI
- As pessoas apreciam meu trabalho cada vez mais no meio do caos. É assim.

PERGUNTA - É possível que, em momentos de caos, as pessoas procurem com mais força as narrações estruturadas, que tenham a ver com a música, como é o seu caso. Seus livros se devem mais às leituras que o sr. fez ou aos discos que ouviu?
MURAKAMI
- Na época em que eu era dono de um clube em Tóquio, ouvia música o tempo todo, de manhã à noite. Assim, escrevo meus romances como se estivesse tocando um instrumento. Mas não toco instrumento nenhum; estudei um pouco de piano quando era criança, e isso me foi útil para escrever. O ritmo é crucial numa narrativa.

PERGUNTA - De que trata seu novo livro ("De Que Falo Quando Falo em Correr")?
MURAKAMI
- É um livro de memórias. Comecei a correr há 30 anos, na mesma época em que comecei a escrever. Já corri tanto... Já fiz até mesmo uma maratona de cem quilômetros, um triatlo. Comecei a escrever o livro há sete anos e o terminei quase sem me dar conta. Sou um corredor de longa distância.

PERGUNTA - É por isso que seus livros são tão espessos?
MURAKAMI
- Sim, não consigo parar. Quando você escreve, precisa sentir confiança em si mesmo. A corrida de longa distância lhe dá isso: muita autoconfiança. A segurança de que vai concluir o que começou. Se você escreve narrativas mais curtas, talvez não precise disso. Mas, em meu caso, sim. Eu era um sujeito normal que de um dia para outro começou a escrever, simplesmente. Um leitor apaixonado que de repente se pôs a contar histórias.

A íntegra deste texto saiu no "El País".
Tradução de Clara Allain.



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