São Paulo, quinta-feira, 01 de julho de 2010

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NINA HORTA

Livros de cozinha


Na verdade, o que o livro diz é que as receitas de "trifle" são tantas quantas a imaginação pode voar


IMAGINEM VOCÊS que uma leitora, Tatiana , resolveu arrumar os armários e dar de presente um bocado de livros de cozinha. E deu para mim. Novos, capas brilhantes, todos para lá de interessantes, uma cópia de "Bones", de Jennifer McLagan (ed. Morrow), e outros e outros, mas dentro do tesouro descobri o maior.
Um livreto bem singelo vindo da Prospect Books. (Chama-se "Trifle", de Helen Saberi e Alan Davidson.)
Alan Davidson, o autor do "The Oxford Companion to Food", era um entendido em peixes do mundo inteiro, promotor do Simpósio de Oxford, um homem bonito, inteligente, sedutor, escrevia como ninguém, ex-embaixador (carreira que trocou pela de pesquisador). Estive algumas vezes nesse simpósio e pude encontrar Helen Saberi, que o ajudava em muita coisa. Durante um certo tempo, ela esteve às voltas com o "trifle", uma sobremesa clássica inglesa, e em pequenos artigos na revista contava das receitas que achava.
A controvérsia a cada publicação era grande. Vinha de intelectuais, cientistas da física e da química. E, enquanto eles se debatiam com o assunto na Inglaterra, eu traduzia um livro do "Time Life" aqui e me matava para achar uma tradução para a sobremesa. Não fui feliz, apelidei-a de "bagatela", que, vamos e venhamos, é quase mais difícil que trifle. (Pronuncia-se tráifal). E ao pé da letra é "bobagem", "delicadeza", "pouca coisa". Fica aos leitores cunhar outro apelido.
Na realidade, o que o livro diz é que as receitas de "trifle" são tantas quantas a imaginação de alguém pode voar. A primeira transcrição em livro vem dos tempos de Shakespeare, 1596. Imaginem Shakespeare entre bocados de Romeu e Julieta papando o seu "trifle".
No século 18, as compilações de "trifle" são muitas, principalmente no "The Ladies Companion". Em 1737, apareceu um volume de receitas e as cem primeiras páginas eram sobre as tarefas obrigatórias de uma mulher, ou sexo frágil, com regras, ordens e observações de como deveriam se comportar através de suas vidas, fossem virgens, esposas ou viúvas. Não se imaginava outra forma de existência. Através dos tempos, nas sucessivas edições, as cem páginas foram minguando, até desaparecerem e ficarem só as receitas.
Bem, qual a construção da sobremesa? Assim como um edifício. Começa no fundo da vasilha ou taça com uma camada de pão-de-ló ou macarons picados ou qualquer outro bolo ou biscoito umedecidos com uma bebida. Poderia ser vinho, xerez, Sauternes... Sobre essa fundação, uma fina camada de geleia para que o que vem por cima não se infiltre sobre o bolo, fazendo buracos. Ou de gelatina. Em qualquer dessas camadas era comum o uso de tirinhas de casca de limão para cortar a doçura.
Depois um creme inglês não muito mole. E, por último, uma camada de chantilly bem batido. Sobre ela, os pequenos enfeites que vão dar gosto, também. As amêndoas espetadas (quando então a sobremesa se chamará ouriço) ou pequenas sementes açucaradas ou pétalas de flores. É bom levar a gelar antes que o chantilly ceda sob o peso dos enfeites.
Para que fique gostosa, há de se ter mão leve no açúcar, bons ingredientes e uma certa delicadeza. Ora, "delicadeza" não seria um bom nome?

ninahorta@uol.com.br


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