São Paulo, segunda-feira, 27 de julho de 2009

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COMPORTAMENTO

Sobre viver

O Folhateen disse sim à "rehab" e foi passar dois dias em uma clínica para viciados que faz seis meses hoje

Danilo Verpa/Folha Imagem
Jovens da clínica, que têm educação física à tarde

DÉBORA YURI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O 60º dia é importante: nele, Paulo*, 17, recebe a ficha verde, parecida com uma palheta de guitarra. Às 11h, ele se senta na sala de convivência. Está escrevendo no diário.
"Limpo e sereno por 60 dias", diz a ficha verde de Paulo, símbolo de seus dois meses de internação no Projeto Jovem Samaritano, a primeira clínica de reabilitação gratuita de SP exclusiva para adolescentes, em Cotia (Grande São Paulo).
O Folhateen passou dois dias no "rehab" para homens de 14 a 18 anos dependentes de drogas, inclusive álcool, que hoje completa seis meses.
Escrita a giz na lousa da sala de convivência, a programação diária do local vai de "7h: despertar" a "23h: silêncio", passando por "8h30: meditação", "13h30: radionovela".
Paulo mostra à reportagem uma página de seu diário. "Hoje meu dia foi ótimo. Teve festa junina, todas as famílias reunidas. Fiquei mais feliz ainda porque veio minha ex-namorada, Júlia, e a gente conversou. Quero que ela volte, mas ela trabalha, é manicure."
Ex-usuário de cocaína e de lança-perfume e bebedor solene de pinga nos bailes da zona sul, ele chegou a furtar equipamentos de cozinha da mãe e R$ 980 da prestação do táxi do pai.
Apanhava da mãe entorpecido pela droga e não sentia dor. Até que ela se cansou. "Vim pra cá porque ela falou: "Ou você se interna ou sai de casa"."
Num dos 11 quartos simples e arrumados que abrigam dois ou três internos cada um, Fábio, 18, rascunha a letra de um rap que logo vai apresentar.
No armário do ex-traficante, ex-garoto de programa, ex-viciado em cocaína, camisetas penduradas de acordo com a cor, cachecol, gel para cabelo, bola de tênis e um pôster de "A Era do Gelo".
Depois do rap, da oração coletiva e da reunião com monitores, o sino toca, hora do almoço. Internos e equipe são incentivados a compartilhar mesas.
Fábio está debruçado sobre um prato de arroz, feijão, bisteca e salada, a segunda de cinco refeições que ele e outros 15 internos, a maioria com vício em cocaína e crack, fazem num dia.
"Eu roubava meus clientes. Aí, me envolvi com outro garoto de programa, saí de casa, fiz uma dívida de R$ 3.000. Consegui juntar R$ 2.000, liguei pra minha mãe. Ela disse que, se eu voltasse, meu padrasto arrumaria o dinheiro", conta.
Dívida zerada, Fábio se internou. Está há um mês no projeto, do Hospital Samaritano em parceria com a Secretaria Estadual de Saúde (SP). Engordou cinco quilos e retomou o apego pelos livros -está lendo "Memórias de uma Gueixa".

"Estava sofrendo demais"
"Eu quis vir pra cá, estava sofrendo demais. Usava maconha, "pedra", mesclado, "farinha'", diz Cristian, 14, em um dos fumódromos da clínica -casinhas com mesa e bancos de cimento no gramado.
Cristian cursou até a sexta série. Traficava e recebia R$ 50 por dia. "Usava todo o dinheiro em droga." Gosta do "rehab", tem orgulho de se tratar, deseja ser poeta ou desenhista.
"Quero voltar a estudar e frequentar salas dos Narcóticos Anônimos, mesmo quando sair daqui. E não vejo a hora de rever o meu cachorro, um chow chow, ele deve estar enorme."

Vida regrada
Tarde em Cotia, e os internos jogam vôlei, discutem futebol, fumam, bebem achocolatado, têm aula de educação física.
"Não vai colocar Michael Jackson de novo", alguém pede, quando um monitor autoriza a ligar o som. Eles não podem ouvir rap nem funk que façam apologia às drogas; TV, só em alguns horários, e DVDs devem ser pré-aprovados.
"Aqui, a gente tem regras, horários, na rua era diferente. Eu me sinto protegido", diz Ted, 17, pai pedreiro, mãe doméstica. Ele bebia, usava crack e cocaína, traficava e roubava "com amigos que têm revólver".
"Aqui não tem droga. Lá fora, é eu e Deus (sic). Tenho que ser forte", fala Fábio, enquanto colegas batucam um pagode: "Sem seu amor, não sou nada..."
No fim do 60º dia, Paulo prega a ficha verde na parede ao lado da cama, junto de uma foto do pai -o duo "foto de família e fichas coloridas do NA" é um hit da decoração na clínica.
Paulo tem medo. "Fico pensando em como vai estar a rua. Quero morar na Praia Grande. Eu não conheço ninguém lá, dá pra fazer amizades novas", diz, enquanto arruma no armário a escova de cabelo, o hidratante de pêssego e pares de tênis Adidas, além de um maço de cigarros estrategicamente escondido atrás das meias brancas.
O que mais ele quer? Que a Júlia volte, é claro.

* Todos os nomes foram trocados.



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