São Paulo, quinta-feira, 18 de outubro de 2007
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Outras Idéias

Anna Veronica Mautner


Ruminantes de memória


[...] NÃO QUERENDO PERDER NADA, ACUMULAMOS MEMÓRIAS, E NÃO EXPERIÊNCIAS QUE, ELABORADAS, NOS TRANSFORMAM

Querer ter acesso a tudo o que é de direito é um ditado equivocado de justiça social. É muito bom ter direitos, mas isso não nos obriga a usufruir imediatamente de todos eles.
Todos nós, maiores de idade, vacinados e em pleno exercício da cidadania, podemos nos candidatar a quaisquer dos poderes da República. Direito, temos. Mas quem de nós quer?
Poderia fornecer uma longa lista de direitos que tenho, mas dispenso. Como exemplo extremo, diria que até posso me matar. Mas prefiro usufruir de outro direito: o de viver. Isso sem falar nas coisas cotidianas, como comer, beber, amar etc.
Nas encruzilhadas da vida, podemos tomar todos os caminhos, mas só dá para pegar um de cada vez.
Sem curiosidade, não vamos longe. Contudo, ficar só xeretando nos impede de treinar para usufruir das experiências de forma plena. Educar nossos ouvidos para apreciar música é mais fácil do que aprender a tocar ou a compor. Assim como comer é diferente de cozinhar.
Não querendo perder nada, acabamos acumulando memórias e lembranças, e não experiências que, elaboradas, nos transformam.
No reino animal, há espécies com um estômago a mais para guardar o alimento que será digerido depois. São os ruminantes. Esse estômago extra lhes permite sobreviver a possíveis períodos de escassez. O Homo sapiens não armazena alimento, e sim memórias, experiências e afetos. Essa memória paralela não foi gerada por falta, e sim por excesso de oferta de experiências que nem rejeitamos nem elaboramos quando ocorrem.
Memórias só se transformam em história depois de assimiladas. Para tanto, é necessário um tempo de elaboração.
Como não temos máquina do tempo, muito se perde no atropelo do cotidiano. Para resgatar um pouco, lançamos mão da narrativa. Passamos a contar histórias "do nosso tempo".
Esta semana mesmo encontrei uma velha senhora que não está escrevendo, nem encomendou, nem vive contando histórias do seu passado. Ela é artista plástica e elabora sem parar suas experiências, imprimindo-as em suas gravuras.
Ela confirmou minha percepção de que hoje se escrevem muito mais autobiografias e narrativas autocentradas do que há 40 anos. Só quem tinha uma vida de aventuras ou eventos singulares é que se punha a relatá-las. Hoje, a geração que teve acesso a mais do que podia elaborar em suas mentes se volta, como ruminantes, para rever o que não incorporou.
Quando viajar se popularizou, os amigos eram obrigados a ver caixas de slides em longas sessões. Agora que viajar se tornou quase uma obrigação, mostrar slides ou fotos virou falta de educação.
Não quero acabar com a alegria dos outros nem com a minha. Quero, sim, aproveitar o que o mundo nos oferece de rotineiro ou espetacular para melhor nos conhecer, individualizar e mudar. Aventuras em corredeiras, sem tempo para serem elaboradas e assimiladas, vão para o álbum de fotografias. Comparando, analisando e revendo, podemos nos entender melhor até diante de um grande amor, que é tão perigoso quanto pular de pára-quedas.
Moral da história: dê tempo ao seu cotidiano, às suas férias e às suas paixões.

ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
amautner@uol.com.br


Leia na próxima semana a coluna de Dulce Critelli


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