São Paulo, quinta-feira, 14 de maio de 2009
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Neurociência - Suzana Herculano-Houzel

Compulsões higiênicas


[...]Distúrbios do comportamento são variações indesejáveis de ações que, em sua forma original, têm razão de ser


Limpeza é bom -mas limpeza demais pode ser sinal de doença, uma modalidade bastante comum de transtorno compulsivo de ansiedade: o cuidado exagerado com a higiene corporal.
O que significa, aliás, que um pouco de ansiedade com relação à higiene corporal deve ser bom, já que distúrbios do comportamento são variações indesejáveis de comportamentos que, em sua forma original, têm razão de ser.
Cutucar espinhas, puxar pêlos que crescem em lugares errados, aparar com os dentes cutículas e unhas grandes são tentações irresistíveis, com uma função em comum: aplacar a ansiedade causada por irregularidades na superfície do corpo.
Acabar com essa ansiedade é uma grande motivação para nos mantermos limpos. Em tempos pré-sabonete, tesoura, pinça e lixa de unha, reduzir a ansiedade causada por irregularidades corporais, principalmente as anti-higiênicas, nos fazia manter um mínimo de higiene.
Afinal, restos de comida grudados à pele viram cultura de bactérias; unhas compridas demais se quebram, expondo o manto da unha a infecções, e acumulam sujeiras e micróbios; cabelos desgrenhados abrigam insetos e parasitas variados.
A maneira natural de evitar que o corpo chegue a esse ponto é deixar o cérebro incomodado -ansioso, mesmo- com tudo o que está na superfície do corpo, mas não deveria estar lá. Pense no desconforto de ficar suado, fedido, colando e coçando a alguns quilômetros do chuveiro mais perto e um banho com água e sabão parecerá o maior ansiolítico do mundo.
E, assim, ficamos temporariamente compulsivos com unhas compridas e cutículas levantadas. Se não há alicate ou manicure por perto, como não havia na maior parte da história da nossa espécie, a solução é... apelar para os dentes.
Por outro lado, mantenha as unhas feitas e a compulsão para roê-las diminuirá, o que indica que a ansiedade que leva ao mau hábito é de fato a resposta do cérebro à irregularidade no corpo. Claro, nem toda compulsão sanitária é saudável. Ficar incomodado com os cabelos oleosos e a pele grudenta é ótimo, pois nos impede de ficar tempo demais sem banho.
No entanto, na presença de um transtorno de ansiedade, compulsões higiênicas podem fugir do controle, dominar nossa vida e até levar a lesões corporais: unhas no sabugo, dedos quase mutilados, sobrancelhas arrancadas, pele esfolada com tanto sabão e água quente. A causa é nobre, mas, se a execução é exagerada, a emenda sai pior do que o soneto.


SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora do livro "Fique de Bem com o Seu Cérebro" (ed. Sextante) e do blog "A Neurocientista de Plantão" ( www.suzanaherculanohouzel.com )

suzanahh@gmail.com




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