São Paulo, quarta-feira, 14 de abril de 2010

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ANÁLISE

Belo Monte, ou a política como avatar

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

A pior coisa que poderia acontecer com o movimento socioambientalista contra a hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, era a adesão de James "Avatar" Cameron à causa. Não do ponto de vista da eficácia, talvez, pois o engajamento do cineasta bilionário projetou o assunto até às colunas sociais. Mas pragmatismo tem limites, ou deveria ter.
Cameron é um avatar cianótico de Sting, que nos anos 1980 se aliou ao caiapó Raoni Metuktire na defesa do Xingu, inaugurando a vertente celebritária do ambientalismo. Há quem goste. Uma centena e meia de bacanas tietou o diretor num jantar publicitário, mas Sigourney Weaver farejou o alienígena e saiu à francesa.
Até Marina Silva, a pré-candidata dos verdes, beijou a mão do canadense, ou vice-versa. Admiradora do filme e crítica de Belo Monte, envereda mais uma vez pela trilha sentimental de resistência à marcha incivilizada e antinatural do capitalismo brasileiro, dilapidador de capital natural (florestas, água, ar puro) e humano (negros, índios e pobres).
A arribação do jet-set ao Xingu só contribui para alimentar o clima de Fla-Flu que se construiu antes mesmo da usina. Deputados do PC do B, militares, ruralistas e barões do setor elétrico ganham pretexto para mais um chilique nacionalista. Ambientalistas de poltrona se inebriam com a gaia onisciência dos povos da floresta, de pele vermelha ou azul.
A maior vítima desse travesti da luta política é a objetividade possível. Nenhum dos lados se presta a um debate substantivo sobre Belo Monte, porque pisar nesse terreiro implicaria uma negociação com final em aberto, ou seja, admitir que sua conclusão poderia ser tanto construir como não construir a hidrelétrica.
As audiências públicas sobre a construção da barragem, segundo os relatos disponíveis, foram uma piada. Engenheiros deitavam falação técnica para ribeirinhos e índios. Se o Ministério Público Federal no Pará conseguir reunir indícios de que o processo de esclarecimento foi uma farsa, toda urgência de Belo Monte escoará pelos canais intermináveis do Judiciário.
No campo adversário da usina, também, os fatos parecem ter pouco valor. Até bispos juram por tudo quanto é sagrado, para eles e para os índios, que Belo Monte será seguida de um colar de outras hidrelétricas no Xingu, a montante. A hipótese foi oficialmente descartada, mas não se fala mais nisso.
Por que o governo federal não se esforça mais por um esclarecimento público? Quiçá porque terá de tocar na questão espinhosa da baixa eficiência e da alta incerteza da obra. Com reservatório relativamente pequeno, a hidrelétrica produzirá, nos meses mais secos, menos da metade da potência instalada de 11,2 mil megawatts.
Se a energia firme da usina for inferior a 5.000 ou 4.000 megawatts, qual o sentido de ficar repetindo a versão ufanista de que será a terceira maior hidrelétrica da Terra? O desembarque de um dos consórcios construtores, às vésperas do leilão, sugere que pairam dúvidas sobre a viabilidade do empreendimento, ao menos em termos financeiros.
E a Volta Grande do Xingu, vai mesmo secar em períodos do ano a ponto de impedir os deslocamentos de barco? A pesca está de fato ameaçada? O que será feito da multidão de operários que afluirá à região, depois que terminar a obra?
São perguntas passíveis de abordagem factual e objetiva, se não de equacionamento e solução, mas o debate que interessa não se materializa. É mais fácil imaginar que a questão se decidirá com arcos e flechas aliados de Eywa contra buldôzeres movidos a dinheiro. Aí, sim, ficará tudo azul na política.


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