São Paulo, sábado, 29 de maio de 2010

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ENTREVISTA MARTIN CHALFIE

Pressão por pesquisa aplicada estrangula a ciência, afirma Nobel

Marisa Cauduro/Folhapress


DESCOBRIDOR DO MÉTODO DE MARCAR CÉLULAS COM PROTEÍNA DE ÁGUA-VIVA CRITICA POLÍTICA CIENTÍFICA DOS EUA E FAZ APELO POR FINANCIAMENTO FLEXÍVEL

RAFAEL GARCIA
DE SÃO PAULO

O biólogo Martin Chalfie, Prêmio Nobel de Química de 2008, chegou ontem a Águas de Lindoia (SP) trazendo um alerta: a pressão para que toda pesquisa ganhe alguma utilidade está minando o financiamento à produção de conhecimento puro, matéria-prima da ciência.
Atraído à reunião da Sociedade Brasileira de Química, em parte, por gostar de música brasileira e ser fã de Jorge Amado, Chalfie criticou a política científica dos EUA para exemplificar sua posição.
Mal sabia que a comunidade científica do Brasil discute agora o mesmo problema. Nos EUA, nenhuma coleção científica acabou incendiada por falta de abrigo adequado, como aconteceu com as cobras do Instituto Butantan, em São Paulo. A esperança de que a atenção à ciência básica ganhasse mais destaque após o fim da era Bush, porém, ainda não se traduziu, diz o cientista.
Chalfie ganhou o Nobel, em conjunto com Osamu Shimamura e Roger Tsien, por descobrir como usar a GFP, uma proteína luminescente de águas-vivas, para marcar a ativação de genes.
Em entrevista à Folha, ele explica por que não imaginava de cara que sua técnica ganharia tantas aplicações, mas se entusiasmou com o trabalho mesmo assim.

 

Folha - Qual é o assunto da sua palestra aqui?
Martin Chalfie -
O Título da palestra é "GFP iluminando a vida". O subtítulo, que não contei a ninguém ainda, é "Aventuras em ciência não-translacional". Essa é uma expressão que inventei, então vou explicar. Há uma pressão muito grande para justificar a pesquisa científica com supostas implicações imediatas que ela pode trazer. Algumas pessoas têm defendido que deveria haver muito mais pesquisas que apliquem informação científica diretamente ao combate a doenças. Em outras palavras: "traduzir" ["translate", em inglês] aquilo que foi feito no laboratório para a clínica.
O problema é que a maioria das pessoas que eu vejo defenderem isso querem que absolutamente tudo seja translacional. Agora, se você não tem informação básica para traduzir, não sobra nada para fazer.
Minha apresentação é, em parte, um apelo para que não esqueçamos o fato de que, para quase tudo o que sabemos sobre medicina, há uma sustentação de ciência básica que é muito importante.

A política científica americana está esquecendo a ciência básica, então.
Acho que há alguns erros. Quando as pessoas pressionam pela pesquisa translacional, às vezes elas assumem que nós já aprendemos o suficiente. Para mim e para a maioria dos meus colegas, porém, isso é uma falácia.
Quero mostrar como uma coisa maravilhosa [a GFP] foi encontrada acidentalmente por alguém pesquisando questões básicas sobre águas-vivas, e como ela teve implicações e se tornou útil para estudar doenças e para desenvolver biotecnologia.
Além disso, muitas pessoas pressupõem que pesquisadores de ciência básica não pensam nas implicações do que fazem. Isso é falso.
Acho irônico que nos EUA haja esse apelo por pesquisa translacional, e pelo que vejo, quando treinamos pessoas nas faculdades de medicina, a quantidade que eles aprendem do básico está encolhendo. Ao mesmo tempo, querem que a ciência básica seja aplicada ao combate a doenças. É uma contradição.
Quando o pacote de estímulos do governo Obama foi lançado nos EUA, os NIH [Institutos Nacionais de Saúde] receberam um bocado de dinheiro. A primeira coisa que fizeram com parte desse dinheiro foi abrir uma disputa pelas chamadas "Challenge Grants" [bolsas desafio]. Essas bolsas eram maravilhosas e cobriam cem diferentes tópicos. O problema é que, das cem áreas que eles escolheram, apenas duas não eram translacionais.
Eu não sou contra pesquisa aplicada, mas não acho que ela deva suplantar a ciência básica numa escala de 92 contra 2.

Uma coisa inusitada sobre seu trabalho que lhe rendeu o Nobel é que ele não é sua linha de pesquisa principal.
É estranho receber o reconhecimento por algo que era uma parte relativamente pequena da minha carreira. De vez em quando ainda faço algo sobre GFP, mas é mesmo um trilho secundário. No nosso laboratório, estávamos tentando descobrir quais células estão ativando os genes nos quais estávamos interessados e, quando ouvi falar da GFP, me dei conta que elas poderiam ser uma maneira maravilhosa de fazer esses experimentos.
A maneira como a maioria dos cientistas trabalha é a seguinte: eu tenho uma ideia e vou atrás dela. Mas, se no meio dos experimentos, algo diferente aparece, eu vou seguir aquela pista.
Quando recebemos verbas, o que temos não é um contrato, é uma bolsa.
Em um contrato, prometemos fazer A, B, C, e temos de fazer. Minha visão sobre como bolsas devem ser é dizer: "neste momento, acredito que a resposta para essa questão seja fazer A, B e C".
Mas se eu fizer A, e descobrir depois disso que é mais importante fazer D e E em vez de B e C, o financiamento precisa lhe conceder a liberdade de seguir suas ideias.
Se eu tivesse a ideia de usar a GFP como marcador e tivesse de ter escrito um contrato para obter uma verba, eu teria levado nove meses, reclamariam que eu não tinha dados preliminares e não saberia se iria funcionar.
Mas nós nunca tivemos de escrever um pedido de verba para obter o financiamento que usamos para produzir a GFP. Ela era parte da verba geral dos NIH que eu tinha para meu laboratório, e eles ficaram muito felizes de eu ter feito esse trabalho.

Douglas Prasher, seu colega que isolou o gene da proteína GFP, não ganhou o Nobel, abandonou a ciência e vive como motorista de vans hoje. Vocês chegaram a conversar depois do prêmio?
Ele foi um dos meus convidados na entrega do prêmio. Eu acho que ele poderia, sim, ter sido incluído na lista do prêmio, e o fato de ele ter abandonado a ciência depois é irrelevante. O problema, na verdade, é a regra de que cada Nobel só pode ser entregue a no máximo três pessoas. Eles tiveram de discutir a quem dar o prêmio e escolheram eu, Tsien e Shimomura. Agora, Douglas realmente fez a peça chave do projeto.
Além disso, é preciso olhar as razões pelas quais Douglas saiu da ciência. Antes do meu estudo sobre a GFP, o campo de estudos da bioluminescência não era muito grande. Era difícil conseguir dinheiro para essas pesquisas e, quando Douglas saiu do pós-doutorado, não tinha como se sustentar como pesquisador independente.
Depois disso, ele se mudou para o Alabama para trabalhar na Nasa. Ele estava fazendo ótimas pesquisas lá, mas no começo da administração Bush o presidente disse que mudaria a ênfase das pesquisas para mandar astronautas de volta à Lua. Muitas linhas de pesquisa foram encerradas imediatamente para que os cientistas pudessem ter tempo para atender à vontade do presidente. Algumas pessoas perderam seus empregos, e creio que Douglas Prasher tenha sido uma delas.


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