Acorda favela
Inspirado em Gaud, artista carioca junta cacos da vida e faz do mosaico ferramenta de reflexo crtica
Valmir Vale resolveu encarar uma partida de sinuca, num botequim a meia quadra de casa, naquela que se tornaria a inesquecvel madrugada de 29 de agosto de 1993. O clima estava propcio para jogar conversa fora.
Cansado, ele encurtou prosa e jogo. Seguiu logo para cama. Era pouco mais de meia-noite quando foi sacudido pelo irmo Aldenir, desesperado e aos prantos.
"Valmir, acorda. Aconteceu uma tragdia" Cerca de 50 policiais militares encapuzados invadiram a favela. Arrobaram portas, entraram em diversas moradias e executaram 21 moradores. Nenhuma das vtimas tinha antecedentes criminais.
O massacre de Vigrio Geral, como ficou conhecida a maior chacina da histria do Rio, foi uma vingana pela morte de quatro PMs assassinados por traficantes dois dias antes.
As cpsulas das armas que cobriram as ruas da comunidade e fragmentos de granadas foram recolhidas. Valmir trabalhou nelas durante trs anos. "Almas Aflitas" o resultado do trabalho: uma escultura com cerca de 12 mil cartuchos de diferentes calibres que virou smbolo da luta contra a violncia e um manifesto em prol dos direitos humanos em 1996.
Nascido e criado na favela, Valmir pensou: "Ser que vou morrer assim? Chacinado? Preciso sair e conhecer o mundo".
Um amigo, que conhecia o trabalho de Valmir, o convidou para trabalhar em espetculos circenses na Alemanha. A vida mambembe pareceu-lhe mais segura. Ele ento juntou a grana que tinha e deixou o Brasil.
O rapaz perambulou pela Europa por 12 anos. Conheceu mais de 15 pases. Aprendeu a arranhar alguns idiomas. Na Espanha, o mergulho foi outro, na obra de Antoni Gaud (1852-1926), que daria um novo rumo a sua vida.
Foi por meio do artista catalo que o rapaz do subrbio carioca apaixonou-se de vez pelo mosaico, tcnica que ele conhecia um pouco pela paixo ao trabalho do brasileiro Di Cavalcanti.
Juntando cacos, principalmente os da vida, Valmir percebeu que o mosaico poderia descortinar um novo mundo. Para ele e para os moradores das favelas cariocas.
De volta ao Rio, o artista criou nmeros para cerca de 300 casas e estabelecimentos de Vigrio Geral. Tal iniciativa mexeu com o brio dos moradores, que tambm se engajaram no projeto. Passaram, eles mesmos, a reformar e pintar as moradias.
Muitas vezes, era o artista quem bancava o projeto. "Teve momentos em que no acreditei que o mosaico vingasse", lembra, emocionada, a pedagoga Raquel Motta do Amaral, 27, mulher de Valmir me da filha do casal, Mariana, 3. "Tive que assumir as despesas de casa. O dinheiro no vinha do mosaico."
Valmir seguia otimista, apostando tudo no projeto. Hoje, conclui Raquel: "Ele tinha razo. A arte tem mesmo o dom de transformar as pessoas e uma sociedade".
Neste ano, com a colaborao de 30 moradores do Alemo, ele criou nove mosaicos. Os painis foram produzidos na Escola Estadual Jornalista Tim Lopes e instalados nas estaes de telefrico, espcie de carto-postal do PAC (Programa de Acelerao de Crescimento).
Em cada estao, um colorido mosaico sada os passageiros. Um deles representa uma baiana. Noutro, Cartola. Tem ainda uma bela homenagem a Noel Rosa, um dos primeiros brancos a subir os morros, com terno, camisa, gravata e um cigarrinho na boca, l no alto do morro do Adeus.
A ao dos painis prev ainda a realizao de oficinas de mosaico para a capacitao de moradores, visando incluso social e gerao de renda.
Na cidade esparramada entre o mar e as montanhas, no estranhe se em breve os telefricos e os mosaicos de Valmir entrarem na rota alternativa do turismo global.
Afinal, esse morador de Vigrio adora repetir a frase de Leon Tolsti: "Se queres ser universal, comea por pintar a tua aldeia". exatamente o que Valmir no para de fazer.
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Conhea mais sobre a Instituto Musiva
Arte milenar com origens na Grcia Antiga, o mosaico no em si uma novidade, principalmente para as classes mais favorecidas da populao. A proposta do Instituto Musiva utilizar a tcnica como forma de expresso artstica para a incluso social, a sustentabilidade e a gerao de renda em todas as suas atividades.
O retorno social almejado econmico, e a cada oficina os participantes obtm um produto final, tangvel e carregado de identidade do prprio aluno e/ou da cultura local, fazendo interagir a arte popular com a erudita.
Dessa forma, o Musiva estruturou projetos como o Incluso Postal, o qual, mais do construir placas numricas de mosaico, que sempre existiram, trabalha o processo de confeco desses objetos em busca da autoidentidade. Nessa ao o mosaico utilizado como linguagem de expresso artstica e demonstrao da cultura dos alunos.
No processo de criao de uma pea de identificao da residncia, estimula-se o sentimento de pertencimento e orgulho. No raro, os moradores passam a fazer reformas estticas do imvel -a nova fachada reflete um novo interior pessoal.
O instituto tambm foi responsvel pela construo dos painis de mosaico nas estaes de telefrico do Complexo do Alemo, na zona norte do Rio. A comunidade se envolveu em todos os passos, da escolha dos nomes aos temas dos painis, no intuito de ressaltar a sua viso de mundo e seu direito de ser protagonista.
Para desenvolver esse trabalho de forma coletiva, o empreendedor social aprimorou uma tcnica especial de montagem modular, substituindo o papel que serve de base para o mosaico por tela de fibra de vidro. Isso permitiu que um nmero maior de pessoas participasse do processo de confeco em um prazo menor.
Embora suas origens datem informalmente de 2004, o Instituto Musiva foi legalmente constitudo apenas em abril de 2010, o que faz com que apresente histrico restrito em registros, tanto em gesto quanto no aspecto financeiro.
Na nica documentao financeira disponvel, de 2010, verifica-se que 100% dos recursos (R$ 244 mil) vieram das obras sociais do PAC (Programa de Acelerao do Crescimento), fora motriz do instituto em seu incio.
Em 2011, esse percentual cair para 88% (estimativa), sendo que o restante derivar de doao do Ministrio das Relaes Exteriores da Noruega.
Um valor bem inferior decorrer da receita de venda de produtos do grupo produtivo pelo site e pela Rede Asta, especializada na venda porta a porta de produtos de organizaes sociais.
A ONG tambm est fechando parceria com a indstria de biscoitos Piraqu, para levar suas oficinas comunidade de Madureira, no subrbio do Rio, onde a empresa est localizada.
Principais parceiros: Arydalton Delphino Comunicaes, Consrcio Rio Melhor - Odebrecht, Escritrio de Arte, Governo do Estado do Rio de Janeiro - EGP RIO - Casa Civil / Trabalho Social do PAC, Hiperativa Comunicao, Ministrio das Relaes Exteriores da Noruega (Kultur Akershus), Piraqu e Rede Asta.
A organizao afirma ter beneficiado diretamente, desde sua fundao, 472 pessoas, sendo que atualmente beneficia 140. Ao longo de 2011, dever haver mais 300 participantes de oficinas no Complexo do Alemo.
A capacidade operacional da ONG de 160 participantes por curso a cada trs meses, a depender essencialmente dos recursos financeiros para operacionalizar as oficinas.
O projeto de Incluso Postal est sendo ampliado para identificar ao menos 2.000 residncias em Vigrio Geral e 10 mil casas no Complexo do Alemo. O plano que entre 15 mil e 20 mil famlias sejam beneficiadas at o final de 2012, com recursos do PAC e de outros patrocinadores. Atualmente, cerca de 300 casas contam com as placas numricas de mosaico em Vigrio Geral, onde a iniciativa comeou.
O trabalho do instituto acontece nas seguintes comunidades:
- Vigrio Geral
Comunidade onde o Musiva foi fundado. Atualmente as aes no local so desenvolvidas por meio de pequenos apoios e da comercializao, em pequena escala, de objetos de mosaico.
No local so realizadas aes espordicas do projeto Incluso Postal e, principalmente, o embelezamento de moradias por meio de painis de mosaico, como parte do projeto Dobrando Esquinas;
- Complexo do Alemo
Local de maior atuao do instituto, justificado pelo grande volume de investimentos do PAC nessas comunidades. Foram atendidos mais 300 moradores desse local. So desenvolvidos no Alemo os projetos Ofcio da Arte (confeco de objetos artesanais para comercializao) e IdentificArte (incluso postal com placas numricas de mosaico), alm da prestao espordica de servios profissionais.
At o final de 2011 dever ser lanado o projeto Tecendo Arte, de confeco de objetos femininos, como bijuterias, para gerao de renda;
- Rocinha
No local, tambm integrante das obras sociais do PAC, vem sendo atendidas mais de cem famlias desde maro de 2011, por meio do projeto de Incluso Postal, alm da instalao de painis de mosaico.
Em razo de parceria fechada com a Unio de Mulheres Pro Melhoramento da Rocinha, o nmero de beneficirios diretos dever crescer nos prximos meses.
- Morro do Estado (Niteri)
O Musiva capacitou em Niteri 20 pessoas, em oficina de mosaico em 2010, no projeto Caminhos Coloridos. Os participantes fizeram placas numricas para 30 casas do Morro do Estado e reformaram seis casas (emboo e pintura).
O grupo produziu ainda um letreiro para a associao local de moradores e um letreiro para um bar da comunidade. Todo o projeto foi no entorno de um campo de futebol.
A organizao ainda no sistematizou seus mtodos para replicao imediata. No entanto, afirma estar desenvolvendo uma apostila sobre ensino da arte musiva.
A atuao do Musiva norteada pelos preceitos de responsabilidade socioambiental e a busca da formao de uma cadeia produtiva juntamente com as comunidades parceiras.
O instituto definiu trs compromissos que permeiam todas as suas atividades:
- estabelecer parcerias com os moradores das comunidades, visando resultados que beneficiem toda a populao;
- ser pautado no respeito dos valores e da cultura local, visando a realizao dos projetos em parceria com a comunidade;
- contribuir para a diminuio da violncia por meio da democratizao do acesso cultura e da valorizao da arte nacional.
Diante desses paradigmas, a ONG desenvolveu uma forma de ensino em que o arte-educador ensina aprendendo, de modo que a interao resulte em arte e conhecimento para ele e para o aluno.
Sua viso que a arte seja um estmulo para a busca do conhecimento, para a retomada da autoestima e para a capacitao profissional, com consequente gerao de renda.
Dessa forma, os arte-educadores que prestam servios ao Musiva tm como meta estimular o aprendizado, levar a informao, incentivar a capacitao e respeitar as diferenas dos participantes.
Os cursos so abertos e os primeiros objetos produzidos so sempre as placas numricas de identificao postal -alm de simples, carregam toda uma simbologia de pertencimento e autoidentidade. Tambm confeccionam objetos menores, como tampos de mesa e porta-retratos.
Os aprendizes que se destacam nessas oficinas passam ao mdulo avanado e aprendem as tcnicas de montagem dos painis. O processo leva em torno de seis meses, a partir dos quais os participantes encontram-se aptos a produzir objetos e painis de mosaico para venda e prontos para disseminar as experincias vividas nas oficinas para outros moradores da comunidade.
Observa-se normalmente que os participantes desenvolvem nas primeiras aulas objetos com imagens simples relacionadas sua cultura. No decorrer da oficina, contudo, passam a reproduzir imagens mais complexas e detalhadas relacionadas cultura do outro, da comunidade e da sociedade em geral.
Essa interao uma oportunidade de se apresentarem diversas vertentes culturais e informaes sobre:
- acesso a direitos e a bens comuns;
- noes de sade;
- qualidade de vida;
- preservao do ambiente;
- assuntos transversais que surgem a partir do interesse dos moradores.
Dentro da vertente ambiental, os participantes das oficinas aprendem a reutilizar materiais, como cacos de vidros e cermicas, que seriam descartados no lixo.
O instituto realiza atualmente quatro projetos dentro dos preceitos antes mencionados:
- Incluso Postal ou IdentificArte
Produo de placas numricas de identificao postal, contribui para chamar a ateno de governos sobre e necessidade de identificao de imveis de comunidades em risco social. Ao produzir sua prpria placa, o morador passa a refletir sobre sua situao habitacional -e, consequentemente, a melhor-la.
Na maioria das vezes, a falta de recursos financeiros no motivo para deixar de embelezar a parte externa de seus imveis. As casas normalmente no apresentam emboo e pintura na fachada, mas so muito bem equipadas com objetos tecnolgicos de ltima gerao. Essa controvrsia denota a baixa autoestima dos moradores que se encontram aflitos pela violncia e pelo caos.
Ao confeccionar uma placa numrica de mosaico, expressam sua cultura e revelam sua identidade, j que a identificao vai permitir que possam ser mais facilmente localizados pelos servios postais.
- Dobrando Esquinas
Tem a proposta de levar arte e benfeitorias para imveis das comunidades de baixa renda. Em geral, so instalados grandes painis de mosaico que retratam temas ligados cultura local.
O empreendedor social aprimorou o chamado mtodo indireto-direto, em que passou a utilizar tela de fibra de vidro em vez de papel como base dos painis. Com isso, aumentou a eficincia na produo -como base de comparao, um painel produzido pelo artista plstico Romero Britto para o telefrico do Complexo do Alemo demorou trs meses para ficar pronto. O Musiva confeccionou, em dimenses similares, nove painis em dois meses.
O projeto j aconteceu no Complexo do Alemo, na Rocinha e em Vigrio Geral. Recentemente, conseguiu aprovao para captar R$ 500 mil para um ano via Lei Rouanet (o valor ainda no foi captado).
- Ofcio da Arte
Oficinas para ensino da arte musiva com foco na produo de objetos de mosaico para a venda. So realizadas em parceria com a Escola Estadual Tim Lopes, no Complexo do Alemo.
A fbrica de biscoitos Piraqu firmou acordo para investir R$ 80 mil por meio de lei estadual de incentivo para financiar o projeto em Madureira, onde est localizada, com benefcio a 120 pessoas em oito meses.
As escolas de samba Tradio e Portela manifestaram desejo de estruturar o projeto em seus barraces.
- Tecendo Arte
Com patrocnio de R$ 114 mil do trabalho social do PAC, tem como objetivo a realizao de oficinas para ensino de confeco de acessrios e bijuterias com o mote do mosaico.
Metade do maquinrio adquirido para o projeto ser doado para os participantes, como estmulo para formao de um grupo produtivo. Devem ser beneficiadas 120 pessoas em quatro meses.
- Mousen
Mais novo projeto elaborado pelo instituto, objetiva criar um plano pedaggico extracurricular com uso de mosaico para professores de educao infantil nas escolas do Estado do Rio.
DEPOIMENTOS
"Diga a: que garoto da minha idade no vaidoso? Gosto de tirar sobrancelhas e, vez ou outra, fao a unha. Agora, como ganho o meu prprio dinheiro, estou montando o meu guarda-roupa.J comprei duas calas jeans, cinco camisetas para trabalhar, quatro de passeio, trs casacos e um relgio, aquele de trocar as pulseiras, sabe? Ainda consegui quatro bons, minha paixo. Paguei tudo vista.
Recebo uma bolsa de R$ 400 mensais como assistente de arte-educadoras do Instituto Musiva, em Olaria. Entrei l como office-boy, mas a pintou a oportunidade de fazer o curso de mosaico.
Fico esperto para no arrancar um dedo quando uso o alicate de cortar o azulejo. Aos poucos, estou pegando o jeito. J bolei dois mosaicos em homenagem ao Flamengo, meu time do corao.
Um deles dei de presente para o meu primo. Dei no, ele acabou levando e no tive coragem de dizer no [risos]. O outro fiz para um tio. Ainda quero fazer um bem grande para colocar na sala l de casa.
Do meu salrio, reservo R$ 100 para ajudar nas despesas. Moro com a minha irm, Camila, 20, em Vigrio Geral. Ela bem mezona. Quando estou doente, ela me leva at remdio na cama.
S que ela sabe ser durona quando precisa. Controla o horrio em que devo chegar em casa e nunca saio sem dizer a ela aonde vou. Tambm, n, se acontecer alguma coisa comigo, ela a responsvel.
Em 2009, minha me morreu de cncer no intestino. Quando era garotinho, em 1999, meu pai, que trabalhava como gerente do trfico de drogas na favela de Vigrio Geral, foi morto numa emboscada armada pelos caras que trabalhavam com ele. Tipo traio.
claro que eu sinto a falta deles. Principalmente quando estou sozinho e na hora em que vou dormir. Ainda bem que tenho minha irm e os meus parentes. Eles e o meu emprego so tudo o que tenho na vida.
Perto de casa, tem uma praa. O pessoal se rene l para fumar maconha e para cheirar p. J me ofereceram. Nunca aceitei e nunca vou querer, meu barato outro. Sou um cara de obrigaes.
No posso dormir at tarde, porque pulo cedo da cama para preparar a marmita que levo para o trabalho. Sempre tem arroz, feijo, macarro e carne. Sei cozinhar de tudo e, quando falta alguma coisa l em casa, eu passo no mercado para comprar.
No instituto, se estou de bobeira, reservo umas horinhas para cuidar da lio de casa. Para manter a verba da bolsa, tenho que tirar boas notas. E a, sem ela, l se vai o meu sonho. difcil, sabe?
Odeio qumica. Curto histria e ingls, mas bacana mesmo educao fsica. Teve uma poca em que eu quis ser jogador de futebol. Que garoto brasileiro nunca ficou vidrado nisso?
Agora, quero continuar estudando e fazer arquitetura. Quem sabe eu no posso criar um grande projeto de urbanizao nas favelas do Rio usando como diferencial o mosaico?"
MARLON CORREA DO AMARAL, 17, assistente de arte-educao do Instituto Musiva