Caçadora de histórias
A vida nunca foi fácil para José Dias Campos. Na infância, no sertão da Paraíba, passou fome. E traz ainda as marcas deixadas por quem sobreviveu a grandes secas. Começou a trabalhar aos 8 anos, cortando sisal. Na adolescência, perdeu o pai. Depois, passou no vestibular para engenharia florestal em universidade pública e teve de abandonar o curso para trabalhar.
Mas ele insistiu. Formou-se em economia, com ajuda de amigos, que fizeram vaquinha para a matrícula. De garoto tímido, que sentava nas últimas fileiras, passou a estudante que participou do grêmio e do centro acadêmico da faculdade. Foi também presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Teixeira (PB), sua cidade.
“Vi que era importante ajudar outras pessoas a não passar pelo que passei”, conta ele, que ainda chora ao se lembrar das dificuldades. Hoje, aos 48 anos, é casado e tem três filhos. É o coordenador-executivo do Cepfs (Centro de Educação Popular e Formação Social) e mudou não só sua vida, mas a de muita gente.
Ao levar para a zona rural os projetos do Cepfs, como o Banco de Sementes (em que as pessoas colaboram com grãos, que serão divididos na época de semear, mas devolvidos quando chegar a colheita); o Fundo Rotativo Solidário (em que associados colaboram com valores que depois, em decisão comunitária, serão emprestados a quem tiver necessidade, sem juros) e as cisternas (construídas com o dinheiro do fundo rotativo e pagas em prestações), provocou, paralelamente, a mudança de comportamento dos beneficiados.
“Aprendi a fazer comida alternativa e a plantar sem agrotóxicos em cursos do Cepfs. A qualidade de vida da gente melhorou muito”, exemplifica Maria José Ferreira, 60, sócia do grupo de beneficiamento de frutas da comunidade Fava de Cheiro.
“Nosso trabalho inicia da necessidade que identificamos em reuniões. Melhoramos nossa renda e agora o produto da agricultura familiar é valorizado. A orientação do Cepfs fez a diferença”, diz Iolanda Silva Graça, 49, presidente da associação da comunidade.
Zé Dias tem prazer em explicar como captar água em qualquer terreno, a partir da geografia disponível. Os argumentos são fortes: “Minha preocupação é com a ocupação do solo rural, para que morar no campo seja uma opção para os jovens. E a diferença entre ter água ou não é fundamental”, diz.
Para José Rego Neto, assessor técnico do Cepfs, o gratificante no trabalho com o amigo é “que ele pensa sempre na coletividade”.
Os prêmios se multiplicam pelas paredes da pequena sede. Os parceiros são variados ––até o governo da Finlândia colabora com alguns projetos. Mas a cabeça de Zé Dias está longe. Com a crise econômica, o dinheiro estrangeiro que financia o trabalho está minguando. “Precisamos ampliar a carteira de parceiros. A instituição depende disso, e eu também: aqui é a minha vida, é o espaço em que consigo ajudar as pessoas a descobrir que têm possibilidade de melhorar.”
Para quem vê tanque para armazenar água onde outros viam pedras, certamente essa será apenas mais uma guinada.
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A inovação no trabalho do Cepfs deve ser analisada a partir de dois eixos direcionadores: o do contexto/abordagem e o do estratégico/tático.
A organização atua no médio sertão paraibano, uma região distante do centro de decisões político-econômicas, marcada pela herança do “coronelismo” e com forte presença do clientelismo político. Tampouco atrai investimento de responsabilidade social de empresas privadas, desinteressadas pelo baixo poder aquisitivo das comunidades e, consequentemente, pelo baixo retorno de exposição da marca.
Inserido nesse contexto, o Cepfs foi pioneiro desde sua origem, que remonta a 1989, quando introduziu o conceito de sindicalismo em Teixeira, a 325 km de João Pessoa. A atuação sindical foi aos poucos cedendo terreno para o desenvolvimento local participativo, por meio de uma abordagem de trabalho construída empiricamente com as comunidades ao logo desses 22 anos.
Sua principal inovação é ter estruturado um método que tem nas tecnologias sociais de convivência com o semiárido ferramenta para um resultado muito mais amplo: a mobilização das famílias em prol do diálogo e, por conseguinte, da descoberta de necessidades e da busca de soluções ativas. A construção das cisternas e a formação dos fundos rotativos solidários (poupança comunitária autogerida) são meios ou instrumentos de gestão local na direção de um referencial de desenvolvimento sustentável e participativo e evidenciam os agricultores como protagonistas do processo de mudanças vivenciado no semiárido.
O maior diferencial para outras organizações decorre do fato de que o Cepfs não se baliza por metas físicas (por exemplo, número de cisternas instaladas). Para sobrepujar a cultura assistencialista e o clientelismo, faz questão de investir estrategicamente no relacionamento de longo prazo com as comunidades, preferindo qualidade e profundidade da transformação local a quantidade e escala.
Taticamente, a instituição inova ao desenvolver e adaptar tecnologias sociais a partir dos saberes e conhecimentos populares e de outras experiências, com foco na eficiência. Entre os exemplos surgidos em sua área experimental, destacam-se as tecnologias de manejo hídrico e saneamento, como cisternas de placa adequadas às especificidades físicas e climáticas dos territórios, sistemas de bombeamento adequados para a inclusão familiar no gerenciamento das estruturas (bomba aro-trampolim), sistemas de aumento de eficiência na irrigação, sistemas de qualificação da água para o consumo humano e dispositivos para redução do desperdício de água na produção (cisternas com sistemas de boias para lavagem do telhado).
O aspecto financeiro da sustentabilidade é o maior desafio atual do Cepfs. Do orçamento previsto para 2011 de R$ 355 mil (montante que tem se mantido estável nos últimos três anos), 99% provêm de quatro fontes de recursos internacionais: governos dos EUA e da Finlândia, Trócaire (ligado à Igreja Católica na Irlanda) e BrazilFoundation (por meio de captação de doações nos EUA).
A falta de diversificação das fontes de receita não reflete a busca incessante de novos recursos pelo empreendedor social. Em grande parte, está relacionada a dois fatores: a falta de interesse das empresas privadas em investir na região seu orçamento de responsabilidade social e ao uso político de recursos públicos na direção contrária à do “empoderamento” comunitário e individual.
Principais parceiros: Banco do Nordeste, BrazilFoundation, Fundo Finlandês de Cooperação Local (Embaixada da Finlândia), Inter-American Foundation (agência do governo dos EUA) e Trócaire (Igreja Católica da Irlanda).
O Cepfs tem influência direta, profunda e transformadora na qualidade de vida dos sertanejos em relação aos temas mais básicos e essenciais ao ser humano, como acesso à água potável, produção de alimentos e participação política coletiva.
Depoimentos livres atestaram aumento de renda (até R$ 900 mensais, no caso de uma beneficiária que trabalha com processamento de frutas) e mudança de cultura (abandono de práticas como queimadas e uso de agrotóxicos, por exemplo).
Desde sua fundação, a organização afirma ter beneficiado diretamente 54.379 pessoas.
Principais resultados:
- criação de 23 bancos de sementes comunitários com capacidade de armazenamento de 25,9 toneladas;
- construção de 965 cisternas com capacidade para armazenar, aproximadamente, 15.440.000 litros de água potável, para 5.750 pessoas;
- construção de 205 cisternas com apoio direto dos fundos rotativos solidários, com armazenamento total de 3.280.000 litros de água potável;
- mobilização e formação de 505 homens e 386 mulheres para controle de políticas públicas governamentais;
- incentivo ao reflorestamento e à recuperação de áreas degradadas ambientalmente pela produção de 6.500 mudas (frutíferas e florestais);
- construção de 57 cisternas com a tecnologia social sistema de boia para lavagem do telhado, experiência que melhora a potabilidade da água para o consumo humano;
- implantação de duas unidades de beneficiamento de fruta nativa, por meio da extração de polpa, beneficiando dez famílias e um total de 60 pessoas.
O Cepfs teve início em Teixeira, onde fica sua sede, e ampliou as atividades para os seguintes municípios e comunidades, todos na Paraíba:
- Cacimbas –Aracati, Chã, Cipó, Flamengo, Fundamento de Baixo, Fundamento de Cima, Jardim, Lagoa do Campo, Lagoinha, Monteiro, Santa Fé, São Gonçalo, São Sebastião, Serra Feia e Ventania;
- Matureia –Monte Belo e Riacho das Moças;
- Princesa Isabel –Baixio, Lagoa de São João, Macambira de Lagoa de São João e Rancho dos Homes;
- Teixeira –Boa Vista, Bom Jesus, Catolé dos Machados, Catolé da Pista, Coronel, Fava de Cheiro, Flores de Baixo, Granja Girassol, Guarita, Livramento, Poços de Baixo, Riacho Verde, Santo Agostinho, São Francisco, Serra Verde, São José de Belém, Tanque Coberto, Tanque do Novilho e Tauá.
A entidade também atuou em projetos finalizados com agricultores nos municípios de Cajazeiras, Imaculada, Juru, Mãe D’água, Patos, Riacho dos Cavalos, Santa dos Garrotes, São José do Bonfim e Tavares.
Seu pioneirismo tem influenciado e inspirado diversas outras organizações que atuam no eixo “protagonismo – agricultura familiar – convivência com o semiárido nordestino”, seja diretamente (como a Unact – União das Associações Comunitárias do Município de Teixeira), seja indiretamente (como a Adel – Agência de Desenvolvimento Econômico Local, de Pentecoste/CE, fundada pelo economista Wagner Gomes, vencedor do Prêmio Empreendedor Social de Futuro 2010).
Atualmente, a BrazilFoundation realiza a sistematização dos processos do Cepfs, com data ainda não prevista de conclusão.
O Cepfs apresenta pouca interação direta com o poder público, a fim de manter o apartidarismo na condução dos trabalhos –essencial para driblar a cultura do clientelismo ainda muito forte na região.
Dentro de uma estratégia de mudança no longo prazo, a participação em políticas públicas é um tema transversal na entidade, que começou a trabalhar formalmente nesse sentido em 1998, por meio da organização de seminários de cidadania e formação de líderes comunitários em orçamentos públicos e leis associadas.
Como consequência das capacitações e dos encontros regulares, as comunidades rurais passaram a pressionar efetivamente as instâncias governamentais em prol de melhorias, participando ativamente de reuniões nas câmaras municipais, por exemplo.
As comunidades de Fava de Cheiro e Poços de Baixo têm acessado, dirigido e administrado fundos públicos do governo estadual (em parceria com o Banco Mundial) com êxito, ainda que com apoio constante do Cepfs.
Todas as ações do projeto são desenvolvidas por meio de uma abordagem participativa e inclusiva, inspirada nos princípios pedagógicos de Paulo Freire (“ensinar não é transferir conhecimento nem informação, mas promover espaços para sua produção, compartilhamento e socialização”). Em vez da verticalização das ações, o Cepfs prioriza a articulação e o diálogo constantes, com uma visão sistêmica e sustentável, e a divisão de responsabilidades.
A filosofia de atuação do Cepfs visa promover os seguintes efeitos:
- organização social, política e econômica dos atores comunitários;
- aumento de produtividade e rentabilidade na atividade da agricultura familiar;
- criação de mecanismos coletivos de proteção (que indicam a formação de capital social);
- participação das comunidades na formulação de políticas públicas;
- interação desses atores com os processos de governança local;
- redução da migração/êxodo rural, com implantação de alternativas sustentáveis de renda.
Para trabalhar seus objetivos e conteúdos transversais, a organização atua com associações comunitárias por meio de atividades de mobilização, oficinas de capacitação e fóruns. Mensalmente há encontros itinerantes nas associações em que as comunidades apresentam suas experiências como subsídio para alimentar o debate e permitir ajustes e inovações no processo de formação e execução das atividades práticas, tendo sempre em vista o protagonismo dos agricultores.
As atividades de captação e manejo de água, por meio da construção de cisternas, por exemplo, constituem-se ao mesmo tempo meio e fim, para não só possibilitar o acesso à água de boa qualidade mas também para promover uma ação coletiva; organizar a produção, o armazenamento e a comercialização dos produtos; melhorar a segurança alimentar e gerar renda para as famílias.
Os processos desenvolvidos objetivam promover, a partir do encontro de saberes locais, um novo olhar das famílias agricultoras para si e para o seu entorno. Há uma desconstrução dos valores de passividade e, em seu lugar, são erguidos novos pilares: protagonismo, cidadania, solidariedade e interatividade, que fundamentam a ação no processo de construção de um novo paradigma de desenvolvimento.
As atividades do Cepfs estão estruturadas em seis macroprogramas, que se subdividem em diversos projetos permanentes ou com periodicidade definida seguindo prazos de editais e convênios.
1 - Desenvolvimento Comunitário e Associativismo
São realizadas oficinas de capacitação sobre mobilização e associativismo comunitário para o desenvolvimento local. Também se oferece apoio técnico para a criação e a gestão de fundos rotativos solidários, uma espécie de poupança comunitária formada a partir de apoios externos ou da contribuição das famílias que desejam se organizar na comunidade.
O fundo tem objetivo imediato: permitir aos produtores organizados em grupos ou associações construir uma cisterna, uma barragem subterrânea ou qualquer outro bem necessário para sua convivência com as adversidades impostas pelo clima semiárido. Após o uso, os recursos são devolvidos de modo a atender outras famílias ou outras necessidades do grupo, segundo regras estabelecidas pela própria comunidade.
2 - Recursos Hídricos - Acesso e Manejo Sustentável
O Cepfs concede apoio financeiro e técnico para a construção e o aperfeiçoamento de tecnologias sociais concebidas como soluções locais sustentáveis para captar, armazenar e manejar a água de chuva. Entre elas destacam-se:
- agricultura e agroecologia –o foco é o desenvolvimento de práticas agrícolas importantes para manter o equilíbrio do ecossistema;
- barramento de água de estrada –aproveita-se a parte lateral das estradas para captar água da chuva e armazená-la em cisterna de placa, com vistas à irrigação de salvação no período crítico de falta de chuva;
- bomba d’água aro-trampolim –tecnologia social desenvolvida pelo Cepfs com uso de garrafas pet que conferem maior durabilidade e eficiência no manejo da água de chuva armazenada nas cisternas;
- captação de água em lajedo de pedra –faz-se um estudo da pedra a fim de otimizar a área em termos de captação de água da chuva, que é canalizada para o armazenamento em cisternas, diminuindo o volume de evaporação;
- reciclagem de água servida –canaliza-se a água de pias, lavatórios e chuveiros para reciclagem e irrigação por gotejamento com garrafas pet.
3 - Tecnologias Sociais e Convivência com Semiárido
A organização mantém uma área experimental de 5,5 hectares para aperfeiçoamento das tecnologias sociais anteriormente mencionadas e investe no resgate de técnicas familiares antigas abandonadas, mas ainda úteis ao desenvolvimento sustentável, apesar das novas tecnologias (exemplo: biodigestor).
4 - Recursos Genéticos e Biodiversidade
Com vistas à produção agrícola, o Cepfs dá apoio técnico e financeiro para a criação de bancos de sementes comunitários. A proposta é estruturar uma fonte rotativa de sementes para as comunidades, com foco na preservação de certos tipos de cultivo e na segurança nutricional das famílias.
5 - Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável
O tema é transversal a todas as atividades do Cepfs e faz parte de sua filosofia de atuação. Pontualmente, são realizadas oficinas sobre ambiente e manejo sustentável de recursos naturais, mudança climática e seus impactos na região do semiárido, bem como sobre melhores práticas e técnicas para combater a desertificação.
Em 2011, a entidade passou a promover experiências de beneficiamento de polpas a partir de frutas nativas visando gerar referências de uso otimizado dos recursos naturais, aumento da área de plantio de subsistência (com consequente atração de fauna) e geração de renda na agricultura familiar.
6 - Gênero e Geração
Tema desenvolvido a partir da observação da cultura local, inclui oficinas de gênero e geração de renda na agricultura familiar com a participação da mulher e em que se aprofundam temas como segurança alimentar, direitos humanos e ambiente.
“A minha família era retirante da seca, vivia hoje aqui, amanhã, acolá. É família grande, somos dez irmãos. Hoje, só eu moro na Paraíba. Uns moram em São Paulo, outros na Bahia, outros em Minas. Tenho quatro filhos e três netos.
Antes, aqui em Teixeira, todo ano a gente tinha de cavar uma cacimba com a vizinhança e ficar esperando juntar água. Todo mundo ficava na fila, às vezes dava só uma lata para cada família. A gente colocava a água num balde para assentar a lama e poder beber e cozinhar. As pessoas ficavam doentes, dava dor de barriga, mas era a água que a gente tinha.
Cansei de sair daqui e ir para Minas, quando percebia que vinha seca grande. Quando sabia que chovia, voltava para casa. Até chorar eu chorava para morar num canto onde tinha água. Agora que a gente tem, não dá vontade de sair. Eu gosto daqui, considero todo mundo como se fosse da minha família. O tanto que a gente lutou para conseguir o que tem hoje...
O que melhorou com o Cepfs, primeiro, foi a chegada das cisternas. Eu tenho duas e um tanque de pedra, que tem capacidade de seis cisternas. Nunca mais faltou água . Por intermédio do Cepfs, meu marido, que não sabia assentar um tijolo, fez um curso e aprendeu a fazer cisternas. Custam R$ 1.200. A gente paga o mais rápido que pode para o fundo rotativo solidário da associação.
Toda a minha vida eu trabalhei na agricultura. Hoje atuo no beneficiamento das frutas na comunidade. A gente colhe o que tem: acerola, caju, graviola, cajá, manga. Antes, as frutas se perdiam. Quando não tem, a gente compra de outras comunidades. Vendemos para dois municípios, para escolas de Teixeira e Cacimbas.
A gente não tinha onde armazenar as polpas, era só um freezer, poucos fregueses. Compramos três freezers e hoje estamos buscando mais clientes. Duas cidades disseram que têm interesse em comprar, mas no ano que vem. Plantei mais árvores frutíferas depois que a gente começou com as polpas. Hoje já não tenho mais espaço nenhum! Não é difícil plantar aqui. Graças a Deus, os grandes períodos de seca passaram.
O Cepfs ajuda em tudo. Com conversa, o José Dias e a equipe buscam melhorias para a gente, são muito importantes para nós, dão muita força, nos orientam. Sempre digo que, sem eles, não somos ninguém.”
MARIA ALVES DA SILVA, 51, da Comunidade de Fava de Cheiro, em Teixeira (PB)