Onda inclusiva
Trio de amigos embarcam numa "trip" em busca do surfe adaptado e da acessibilidade nas praias do pas
Ao mesmo tempo em que o profissional de marketing Henrique Cardoso, 32, observa os movimentos que um aluno tetraplgico faz sobre a prancha de surfe para atribuir-lhe uma nota, Luana Nobre, 27, formada em educao fsica, j prepara a prxima competidora, uma jovem com paralisa cerebral, para entrar na gua.
No mar, buscando a "onda perfeita" para um aluno cego, ajeitando o posicionamento e dando segurana para as manobras dele, est o fisioterapeuta Phelipe Nobre, 33.
O trio -que numa ensolarada tarde de sbado promovia um torneio entre seus 40 alunos- compe a ONG Adpatsurf, que proporciona o prazer de ir praia, com condies de acessibilidade, aliado prtica de surfe, para pessoas com deficincia fsica, sensorial e intelectual.
"O Henrique, alm de cuidar de toda a parte administrativa da ONG, firmando convnios, patrocnios e a papelada toda, a inspirao para ns e para os alunos. Como ele tambm tem uma deficincia, mostra que qualquer um pode surfar", diz Luana.
Por causa de um roubo de uma bicicleta, acontecido em um 3 de dezembro -Dia Internacional da Pessoa com Deficincia-, Henrique, ento com 18 anos, acabou levando um tiro cuja bala entrou pela barriga e atingiu a coluna vertebral. O ato o deixou por seis meses em uma cadeira de rodas.
Com a reabilitao, hoje anda de muletas e pega ondas de joelhos "com desenvoltura de profissional", segundo seus parceiros de trabalho.
Antes de montar a ONG, fez trabalhos "burocrticos" em multinacionais, passou maus bocados para se firmar novamente diante de uma realidade com deficincia, consolou os pais -que anos antes do ocorrido com ele, j haviam perdido um filho em um acidente- e se encorajou para largar uma rotina tradicional de vida para se dedicar integralmente ao projeto social da Adaptsurf.
Acredita que a ps-graduao em gerenciamento de projetos do terceiro setor na Fundao Getulio Vargas, que comeou neste ano, vai ser fundamental para conseguir deslanchar o ainda "ponto fraco" da associao: a sustentao financeira. Considera-se "um tero" da ONG e diz haver perfeita harmonia entre o trio.
"A Luana a nossa parte emoo. Ela une os voluntrios, incentiva os alunos a irem em frente, recebe todo mundo com um sorriso meigo. Ela adora o que faz e estuda muito sobre tudo que envolve as pessoas com deficincia. ela quem tem o controle do desempenho de cada um que passa por aqui."
Luana deixou a famlia e a vida tranquila no Paran e foi para o Rio "por amor" - casada com Phelipe, que morava na capital fluminense. Para que o parceiro tenha mais tempo livre para se dedicar aos trabalhos da ONG, declara no reclamar de trabalhar dobrado para "sustentar a casa".
Ela d aulas em uma escola particular durante o dia e em uma academia de ginstica noite. Quer se especializar ainda mais em atividades adaptadas para deficientes e convicta em dizer que seu grande sonho motivar cada vez mais "o amor e o respeito entre as pessoas". Com seus conhecimentos de prticas desportivas, desenvolveu, junto com o marido, os mtodos para o surfe adaptado.
"Usamos os preceitos das aulas tradicionais de surfe, adaptando com a realidade de cada deficiente. A gente faz uma avaliao fsica, entrevista os alunos sobre seus potenciais
-equilbrio, fora, coordenao- e testamos o desempenho dele na areia. Depois disso, a gente determina como ele vai conseguir pegar a onda -deitado, de joelhos, sentado, agachado, em p", explica Phelipe.
O fisioterapeuta, que faz atendimentos particulares a pacientes do Rio, chega a passar quatro horas na gua salgada, ao lado de voluntrios que o auxiliam. Assim, ele garante que cada aluno faa uma sesso de ondas e v aprimorando a prtica para que, em algum momento, possa pegar sua prancha e aproveitar o mar da forma mais independente possvel.
Os trs querem, para um futuro breve, espalhar o conceito de "praia acessvel" pelo pas, divulgar para o mundo, com metodologia, que o surfe adaptado possvel para quaisquer deficincias e atrair mais mantenedores para poderem se manter totalmente com as atividades da ONG.
Assista
Conhea mais sobre a Adaptsurf
A Adaptsurf pioneira no Brasil por unir os conceitos de acessibilidade praia e prtica de esporte adaptado. O modelo de praia acessvel e banho de mar assistido por equipe especializada desenvolvido pela ONG foi o primeiro no pas e teve inspirao em experincias realizadas em Portugal e na Austrlia.
Antes da fundao da Adaptsurf, no existia mobilizao nesse sentido nas praias brasileiras. O modelo das aulas de surfe adaptado inovador no Rio de Janeiro, sendo praticado com algumas diferenas por duas instituies no litoral paulista (no Guaruj e em So Sebastio).
Um dos principais diferenciais ter o foco na integrao, utilizando o surfe como ferramenta, e no apenas na incluso. O objetivo no "ter um cantinho reservado para deficientes", mas sim garantir que a praia seja "um ambiente de todos", estimulando a interao e o convvio entre banhistas com e sem deficincia.
Para isso, realiza suas atividades diretamente na areia, em pontos movimentados das badaladas praias do Leblon (zona sul do Rio) e do Pep, na Barra da Tijuca (zona oeste).
Outro elemento importante de diferenciao sua metodologia educacional, operacional e de segurana. A Adaptsurf desenvolveu um mtodo prprio e eficiente de ensino de surfe adaptado, com chancela da ISA (International Surf Association) e, sobretudo, a expertise dos trs empreendedores sociais -um fisioterapeuta, uma professora de educao fsica com especializao em esportes inclusivos e um surfista com mobilidade reduzida. Dessa unio, surgiu uma abordagem inovadora ao integrar sade, educao e desenvolvimento pessoal.
Ao contrrio de outras escolas de surfe, as aulas da ONG acontecem durante todo o ano, so gratuitas para todos os praticantes -independentemente de sua situao econmica- e voltadas para todas as deficincias (fsicas e intelectuais).
Por meio de eventos como o Circuito Adaptsurf -primeiro e nico do gnero no Brasil-, a organizao tem sido a principal referncia e protagonista na promoo do conceito de surfe adaptado no pas.
a nica ONG no Brasil convidada pela ABNT (Associao Brasileira de Normas Tcnicas) a participar do grupo de trabalho dedicado normalizao internacional sobre praias, no mbito dos comits da ISO (International Organization for Standardization), sendo responsvel pelo tema acessibilidade.
Os resultados devem sair em 2013, e o selo internacional, em 2014. Tambm foi a organizao escolhida como responsvel pelo surfe adaptado no Rio pela Federao de Surfe do Estado.
A ONG vem se mantendo com o investimento pessoal de seus trs fundadores, que trabalham voluntariamente todos os fins de semana em que as condies climticas permitem a prtica do surfe.
A estratgia de captao de recursos passa por trs frentes:
1 - associados -em fase piloto iniciada em setembro, a proposta estimular depsitos mensais de scios-colaboradores em trs nveis (R$ 20, R$ 50 e R$ 100). Como as aulas de surfe so gratuitas, espera-se a contribuio livre dos alunos, sobretudo os de maior capacidade econmica;
2 - mantenedores -iniciativa voltada a empresas, para investimento de R$ 1.000 mensais tendo em troca exposio da marca e alinhamento a uma prtica esportiva inclusiva.
Atualmente a Adaptsurf conta com um mantenedor de R$ 1.000 (Congress Rental) e um apoiador (Lev) de R$ 200 mensais e est negociando com empresas como Kpaloa, Grupo Umbria (dono das franquias Spoleto, Domino"s Pizza e Koni Store) e Grupo EBX - MMX;
3 - projetos incentivados -com foco no financiamento das atividades da ONG, que atualmente tem um custo de R$ 265 mil anuais (contando recursos humanos e materiais) nos atuais postos do Leblon e da Barra.
Principais parceiros: Congress Rental, Grupo Sol, Grupo mbria, Kpaloa,
ABNT (Associao Brasileira de Normas Tcnicas), Contempos, Dimenso, Feserj (federao de surfe), Geka, Koni Store, MK Advogados, Nike, Rafinha Surfboards, RioTur e Seacult.
A ONG informa que, desde a fundao, beneficiou 520 pessoas em seus projetos. De 2008 a 2010, foram realizadas 1.765 aulas de surfe, alm de quatro palestras e quatro demonstraes de surfe adaptado. Tambm foram realizadas 13 anlises de praias e 11 mutires de limpeza. Todos os alunos se mantiveram desde o incio.
Por meio de um guia de acessibilidade de praias realizado em 2008 em parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro, a entidade mapeou as principais reas de litoral da cidade em relao infraestrutura de acesso a deficientes (segundo as normas ABNT), ao nvel de preservao ambiental e s condies para prtica de surfe.
O guia, nico do gnero disponvel, est aberto para download gratuito no site da Adaptsurf. Segundo a organizao, j houve mais de 8.000 acessos ao guia.
A ONG mantm documentao referente a cada beneficirio e periodicamente consolidam relatrios de avaliao de desenvolvimento individual baseados nos resultados obtidos e nos depoimentos dos beneficirios e seus familiares.
A anlise feita com dados obtidos em avaliaes fsico-funcionais, em que se avaliam os seguintes aspectos do aluno:
- exame fsico (altura, peso, calado, sinais vitais);
- histrico mdico;
- inspeo e palpao (estatura, curvatura, anlise dos membros);
- mobilidade e testes (desempenho na areia e na gua, resultados de testes neurolgicos e de mobilidade);
- funo e vida diria (grau de independncia, vida cotidiana);
- esporte praticado e atividades preferidas (histrico de prtica de esportes);
- hbitos alimentares, posturais e atividades fsicas;
- exame neurolgico (reflexos, sensibilidade, coordenao e equilbrio);
- avaliao postural e anlise de marcha;
- exames complementares, resultados e consideraes, anotaes extras.
Qualitativamente, os resultados so observados pelos relatos pessoais e acompanhamento psicopedaggico. No h levantamento sobre o perfil socioeconmico dos beneficirios, tampouco os processos de avaliao esto sistematizados em documentos.
Estudos elaborados por terceiros apontam que o surfe adaptado contribui para a pessoa com deficincia nos seguintes aspectos:
- melhora e desenvolvimento de autoestima e autoimagem;
- estimula a independncia e a autonomia;
- promove interao e socializao com outros grupos;
- permite contatos com outras pessoas, deficientes ou no;
- uma experincia intensiva com suas possibilidades, potencialidades e limitaes;
- permite vivncia de situaes de sucesso e superao de situaes de frustrao;
- utiliza o potencial sensorial e psicomotor;
- melhora as condies funcionais do organismo (aparelhos circulatrio, respiratrio, digestivo, reprodutor e excretor);
- melhora a fora e a resistncia muscular global;
- aprimora a coordenao motora e o ritmo;
- melhora no equilbrio esttico e dinmico;
- possibilita acesso prtica do esporte como lazer, reabilitao e competio;
- previne deficincias secundrias;
- motiva para outros tipos de atividade;
- manuteno e promoo da sade e condio fsica;
- desenvolve habilidades motoras e funcionais;
- melhora a qualidade de vida em geral.
A Adaptsurf surgiu e trabalha atualmente na cidade do Rio de Janeiro. Mas j levou sua metodologia que combina surfe adaptado e praia acessvel aos municpios de Guaruj (SP), Niteri (RJ) e Arraial do Cabo (RJ). A ONG j apresentou seu trabalho em Saquarema (RJ) e Maca (RJ) -nesse ltimo, h planos para implantao do projeto acessibilidade de praias no prximo vero.
A organizao visualiza sua expanso primeiramente nos Estados do Rio e de So Paulo, devido proximidade geogrfica, para posteriormente atingir o Nordeste.
Seu mtodo de trabalho no est sistematizado em documentos para replicao, mas os candidatos afirmam j ter capacidade para ganhar escala.
A organizao j prestou consultoria a diversas outras entidades, como o Instituto Novo Ser, que realiza o projeto de acessibilidade Praia para Todos durante o vero na Barra da Tijuca.
ONGs de Torres (RS) e Maracape (PE) tambm buscaram a expertise, segundo os empreendedores sociais, alm da Secretaria da Pessoa com Deficincia de So Paulo, para o lanamento do programa estadual Praia Acessvel.
A atuao da Adaptsurf tem trs eixos direcionadores: acessibilidade, integrao e preservao. De forma transversal a esses temas norteadores est a conscientizao para a mudana cultural em relao deficincia.
Acessibilidade
Pioneiro no Rio de Janeiro, o projeto Praia Acessvel tem como objetivo discutir e viabilizar a acessibilidade das praias cariocas. A ONG desenvolve estudos urbansticos e ambientais sobre as condies dos acessos das praias e entorno, analisando principalmente o acesso faixa de areia e ao mar pelas pessoas com deficincia ou mobilidade reduzida.
Para desenvolver expertise no tema, os empreendedores sociais pesquisaram diversos exemplos positivos no Brasil e no mundo. Voluntrios realizaram pesquisas coletando informaes e imagens de diferentes praias na Austrlia, na Espanha, nos EUA (Califrnia e Hava), na Indonsia, em Portugal, no Uruguai e na Venezuela.
A partir desse levantamento, a Adaptsurf fez um estudo sobre as condies dos acessos nas praias do Rio. Com os resultados, elaborou um guia e prestou consultoria para a prefeitura, estabelecendo parceria com a RioTur com a finalidade de promover o primeiro trecho de praia acessvel do Rio de Janeiro.
Aps vencer o edital pblico de convnio com a Secretaria Especial de Turismo do Rio, inaugurou o trecho na praia do Leblon, em frente ao posto 11, com estrutura para atender as pessoas e oferecer aulas de surfe e banho de mar assistido. Para melhorar a acessibilidade foi instalada uma rampa, esteira na areia e compradas duas cadeiras de rodas anfbias, alm de pranchas adaptadas.
Tornou-se rapidamente referncia no tema, do qual foi precursora no Brasil. Prestou consultoria em acessibilidade de praias para instituies de Recife, Niteri, So Paulo e Rio de Janeiro, sendo responsvel por divulgar alternativas em tecnologia assistiva que viabilizam o acesso das pessoas com deficincia no ambiente natural das praias.
Tambm foi convidada pela ABNT (Associao Brasileira de Normas Tcnicas) para integrar o grupo de trabalho dedicado normalizao internacional sobre praias, compartilhando as informaes dos estudos realizados pelo projeto Praia Acessvel.
Integrao
A integrao de pessoas com e sem deficincia se d por meio do projeto Surf Adaptado, que consiste de aulas de surfe adaptado para pessoas com deficincia fsica, visual, auditiva e intelectual. O trabalho embasado por uma metodologia especfica, desenvolvida com tcnicas de fisioterapia e educao fsica, de modo a garantir segurana e eficincia no aprendizado.
Os servios so gratuitos e feitos de forma voluntria pelos profissionais que cedem seu tempo em prol da causa. Desde 2008, as oficinas de surfe acontecem aos finais de semana na praia do Leblon, em frente ao posto 11, e na praia da Barra da Tijuca, em frente ao posto 2.
Os alunos so orientados pela equipe de empreendedores sociais, que elaborou a partir da teoria e da prtica um mtodo de ensino personalizado, segundo cada tipo e grau de deficincia dos alunos, de modo a aprimorar seus aspectos fsicos, emocionais e sociais.
Assim, enquanto o cadeirante surfa de joelhos e em posies que reforcem sua musculatura, o cego utiliza prancha com marcaes especiais e recebe instrues que ajudam a aperfeioar os sentidos, ao passo que o surdo treina equilbrio.
As aulas duram de 40 a 50 minutos durante todo o dia, se as condies climticas permitirem a prtica do esporte. Voluntrios e alunos auxiliam na montagem da estrutura de acessibilidade (esteiras e tenda). Inicia-se com uma aula de ioga.
Os alunos surgem em geral por meio do boca a boca e passam por uma entrevista inicial que aponta seu estado e a melhor forma de trabalho. Excepcionalmente, pessoas com sndrome de Down, descolamento de retina e hemiplegia (com hemorragia cerebral) so desencorajadas a praticar o esporte, por riscos de acidentes.
Parte importante do mtodo a integrao entre os alunos, que acontece na tenda central, onde todos se concentram durante as aulas. Paralelamente, so realizadas oficinas de arte e multimdia e eventos de confraternizao entre os surfistas, tendo em vista o desenvolvimento da criatividade e estimulando a interao dos participantes entre si e com a natureza. A internet, com o uso de redes sociais (Twitter, site, blog e Facebook), outro canal de contato.
Por fim, a ONG lanou o Circuito Adaptsurf, o primeiro e nico especialmente focado em surfe adaptado, cujo objetivo principal no a competio em si, mas a integrao e o estmulo prtica do esporte entre seus participantes.
Preservao
O terceiro eixo de atuao, o projeto Preservao Ambiental, tem como objetivo principal alertar a sociedade sobre a gravidade dos problemas gerados pelo lixo deixado nas praias, tanto para o ecossistema costeiro, como para a sade e o lazer.
Realizam periodicamente estudos ambientais sobre as condies das praias cariocas, analisando a vegetao costeira, a faixa de areia e o mar.
Separam-se e avaliam-se os resduos encontrados com a finalidade de catalogar os tipos de lixo mais encontrados nas praias. A promoo da conscincia ecolgica se d com a mobilizao de voluntrios para mutires de limpeza e educao ambiental dos frequentadores. Os mutires acontecem no Leblon, na Barra da Tijuca, na Macumba e na Prainha.
Interdisciplinarmente, a ONG participa de eventos especializados nos temas de acessibilidade e esportivos como feiras, seminrios e congressos. Realiza tambm palestras sobre surfe adaptado em universidades com a finalidade de divulgar e difundir a modalidade de esporte adaptado entre os estudantes de educao fsica, fisioterapia e psicologia.
Outra vertente desse trabalho o treinamento especfico para atletas adaptados, a fim de aprimorar o condicionamento fsico e a tcnica do surfe, alm de divulgar a modalidade. O empreendedor social Henrique Saraiva e outros atletas fazem demonstraes de surfe em campeonatos nacionais e internacionais.
Essas iniciativas visam concretizar a misso de conscientizar a populao e, principalmente, os rgos pblicos sobre a importncia da acessibilidade das praias para garantir o acesso ao lazer e ao esporte praticado pelas pessoas com deficincia.
DEPOIMENTOS
"Embora desde criana eu enfrente um problema de viso, sempre tive paixo pela gua. Morar no Rio ter o mar como lazer quase obrigatrio. Na adolescncia, eu nadava, brincava na gua, mas nunca havia surfado, nunca imaginei que um cego fosse conseguir parar em p sobre uma prancha, fosse conseguir vencer uma onda.O fato de eu no ver fez aguar demais em mim outros sentidos. Adoro o cheiro do mar, que me atrai muito. Gosto de sentir a intensidade dele: dias mais fortes e dias mais calmos. O vento no rosto delicioso, o barulho das gaivotas demais, a areia nos ps um prazer. Quem est na praia est feliz.
Apesar disso, estava me tornando um cego sedentrio, que ficava s dentro de casa escutando rdio, tomando caf e lendo. Estava muito incomodado com aquela situao, que s comeou a mudar quando eu descobri o trabalho da Adaptsurf.
Nasci com um problema nos olhos, mas s aos sete anos descobriu-se que era uma catarata congnita. At os 12 anos, usava culos fundos de garrafa que no serviam para nada. Para ver televiso, meu pai at brincava comigo, eu ficava cheirando a tela, de to prximo que chegava.
S fui ser operado na adolescncia. Melhorei do olho esquerdo, mas tinha de usar lente de contato com grau 16! A outra vista acabei perdendo numa segunda cirurgia. Aos 18 anos, comecei a trabalhar em grficas de jornal e acabei pegando gosto pela diagramao, arte que exerci em vrios jornais.
Aos 33 anos, com a viso j muito machucada, forada, tive glaucoma. A partir dali, s um transplante de crnea me garantiria continuar vendo alguma coisa. Com quase 40 anos, operei.
Durante um ano e dois meses, consegui enxergar como nunca antes na minha vida, foi um perodo maravilhoso. Mas, a partir da, a crnea foi se apagando, e fiquei totalmente cego. Perdi a perspectiva de ter alegria, ca em depresso.
Agora, aos 52 anos, pegando onda, graas ao auxlio do pessoal da ONG, sinto que estou me renovando. Parece que o gosto da minha infncia voltou, minha vontade de ser feliz voltou. Vou me casar novamente [tem dois filhos de 23 e 24 anos do primeiro casamento], fiz novos amigos, tenho uma nova realidade.
Pego trs nibus para chegar at aqui [na Barra, praia onde acontece o projeto aos sbados], mas no troco esse prazer por nada. Se eu no vier toda semana, fico meio jururu?. Todas as praias do Brasil tinham de ser acessveis, do jeito que o pessoal daqui faz. Isso muda a realidade das pessoas."
MARLON HAUS DA SILVA, 52, aluno da Adaptsurf