Pedagogia da troca
Inspirada em Paulo Freire, educadora cria mtodo que integra saberes populares e cientficos nos morros cariocas e em escolas de todo o pas
A educadora Sueli de Lima, 46, era uma adolescente quando virou (literalmente) de pernas para o ar as mesas da escola pela primeira vez. Indignada com uma reprovao injusta, ela se rebelou contra a instituio educacional, a mesma que tenta reinventar todo dia.
Foi tambm num "momento de revolta", nesses de querer virar a mesa, que comeou a formular a tecnologia social Mandala de Saberes. aplicada no "laboratrio" de sobrados de dois morros cariocas, na Mangueira e em Vila Isabel, onde atua Casa da Arte de Educar, criada pela empreendedora.
Nessas casas fincadas no p de dois morros, Sueli e outros educadores desatam diariamente o n de um fio que separa dois mundos.
"Existe uma linha invisvel que separa o saber da escola e o saber do menino de periferia. Se a gente comea a criar essa conectividade, se consegue furar essa linha e levar uma questo de um lado para o outro, a educao avana", afirma a doutoranda em educao da USP (Universidade de So Paulo).
A Mandala de Saberes, criada em 2007, uma metodologia que coloca o indivduo no centro da esfera, em sintonia com questes relacionadas identidade, memria, cidade e s manifestaes artsticas, entre outras.
"Totalmente favelada"
A busca para romper a linha imperceptvel que aparta saberes populares (ou comunitrios) e saberes cientficos (ou escolares) j despontava na adolescente que decidiu parar de estudar no ensino mdio e, ao mesmo tempo, descobriu que seu rumo na vida seria a educao. Inconformada assumida desde a infncia, parecia uma maneira de no ficar passiva diante da realidade.
Livros do educador pernambucano Paulo Freire (1921-1997) na mochila, a jovem "hippie" subiu, ento, o morro da Rocinha na adolescncia, quando fez seu primeiro "estgio" com lideranas comunitrias como dona Elisa.
Na rua um da Rocinha, a educadora popular foi uma de suas mestras, com quem aprendeu que a educao extrapolava o limite dos livros. Descobriu que educao "era tambm uma prtica em lidar com uma dificuldade do real".
Desde ento, subiu vrios outros morros cariocas Vidigal, Mar, Mangueira, Macacos. E conheceu vrias outras "Donas Elisas", inspiraes para o aprimoramento da metodologia que valoriza cincias invisveis, que incluem tcnicas para construir puxadinhos verticais e curas que vm dos chazinhos da "dona Maria da esquina".
"Hoje sou totalmente favelada", brinca a carioca que cresceu na Gvea, na zona sul do Rio, em uma casa que tinha como paisagem a favela Parque Proletrio, a mesma que viu ser violentamente removida do lugar.
Chia, no entanto, se pintam com "tintas romnticas" a trajetria da educadora formada em educao artstica. "No porque cresci em frente a uma favela que quis mudar as coisas. Foi muito mais um compromisso poltico que fui assumindo ao longo da vida", afirma.
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Conhea mais sobre a Casa da Arte de Educar
A Casa da Arte de Educar tem contribudo de forma inovadora para a qualificao da educao pblica no pas, com chancela dos ministrios da Educao e da Cultura, sobretudo por meio de uma metodologia criada pela empreendedora social em 2007, a Mandala dos Saberes. Com foco na educao integral, a didtica, que constantemente reavaliada, foi adaptada e aperfeioada para a EJA (Educao de Jovens e Adultos).
O trabalho estrutura-se em uma prxis que busca aliar o fazer pesquisa e vem se constituindo num espao de formao para os profissionais envolvidos, bem como para a construo de polticas pblicas no pas. A principal inovao dessa tecnologia social sistematizar de forma clara, eficiente e replicvel, ainda que aberta, valores freireanos de integrao entre os saberes locais e culturais dos alunos com os saberes escolares e cientficos, de forma a colaborar para a ampliao do dilogo entre escolas e comunidades.
Com um oramento mensal estimado em cerca de R$ 40 mil perfazendo R$ 480 mil anuais, sem incluir aes pontuais realizadas a partir de editais, a Casa da Arte uma organizao de pequeno a mdio porte cujos recursos se concentram em repasses governamentais (70% das receitas). O restante 30% provm de parcerias com a iniciativa privada.
Diferentemente de outras ONGs cuja atuao permite a venda de produtos (CDs, shows, artesanatos etc.) ou a prestao de servios (consultorias, eventos, palestras etc.), ao ter como foco o trabalho em prol da melhoria da educao pblica no pas, a Casa da Arte enfrenta a dificuldade de no apresentar fontes relevantes de receita prpria. A fim de diversificar os financiamentos e no ficar merc dos sempre instveis repasses e editais, contudo, a entidade planeja realizar campanhas em parceria com associaes, que sero disseminadoras de seu trabalho para empresas. Atualmente, a ABF-RJ (Associao Brasileira de Franchising), por meio da Afras (Associao Franquia Sustentvel), negocia apoio organizao. Outro alvo da entidade o SindRio (Sindicato de Hotis, Bares e Restaurantes). A candidata visualiza tambm a possibilidade de a ONG prestar servios de turismo nos morros da Mangueira e da Vila Isabel, onde tem forte penetrao, e no Centro de Convenes SulAmrica, um de seus parceiros. Atualmente, a organizao faz uma avaliao da eficcia de sua participao em editais, com o objetivo de maximizar o retorno na abertura dessas fontes de financiamento.
Em termos de continuidade no longo prazo, a empreendedora social tem de superar o desafio de profissionalizar a gesto e criar mecanismos sucessrios e de descentralizao das decises. O estabelecimento recente de um conselho de administrao, com executivos renomados, um sinalizador de que a Casa da Arte se move nesse sentido.
Principais parceiros: Abad Capoeira, Atelier da Imagem, Banco Santander, Criana Esperana, Casa da Cincia, Centro Cultural Banco do Brasil, Faperj (Fundao de Amparo Pesquisa do Rio de Janeiro), Fiocruz, Fundio Progresso, Giovanni FCB, Instituto Desiderata, Instituto de Educao do Rio de Janeiro, Ita, MAM Rio, Ministrio da Cultura (Programa Cultura Viva) e Fundo Nacional de Cultura, Ministrio da Cincia e Tecnologia, Ministrio da Educao, Museu de Astronomia, Museu de Cincias da Terra, Museu Nacional da Quinta da Boavista, Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cincia e Tecnologia do Rio de Janeiro, Sociedade Brasileira de Psicanlise, SulAmrica Seguros, Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Unicef e Universidade de So Paulo.
Nas suas atividades locais de educao integral, a Casa da Arte beneficia cerca de 360 crianas e adolescentes por ano nas duas unidades (Mangueira e Vila Isabel). Com relao Educao de Jovens e Adultos, so cerca de cem alunos atendidos por ano. O projeto tambm atinge de forma indireta cerca de 2.000 indivduos (familiares dos alunos do projeto, pessoas da comunidade e familiares dos alunos das escolas parceiras).
Nacionalmente, a organizao comea a influenciar 10.042 escolas do Programa Mais Educao, do Ministrio da Educao, e cem Pontos de Cultura das cinco regies do pas.
Em 11 anos de atividades, a Casa da Arte realizou 23 projetos, com 16 empresas e cinco rgos governamentais, atingindo diretamente 5.200 crianas e, indiretamente, outros 19 mil jovens.
A avaliao qualitativa e quantitativa do impacto gerado so realizadas sistematicamente. O trabalho tem a superviso de professores dos departamentos de Educao da USP e da Unisantos, que, por meio de uma pesquisa-ao, fazem uma pesquisa anual baseada nas aes da ONG. Ao longo do ano, so avaliadas as relaes professor/Casa da Arte, professor/aluno, aluno/Casa da Arte, famlia/aluno, famlia/Casa da Arte, escolas/Casa da Arte, escolas/aluno e autoavaliao dos alunos. Alguns dos resultados mais importantes (de 2009) demonstram:
- a reprovao por desempenho ou frequncia de alunos do segundo ao nono anos de 15% em escola da Mangueira e 13% da Vila Isabel contra 2% de aluno da Casa da Arte;
- a evaso dos alunos do segundo ao nono anos fica em 2% em escola da Mangueira e 3% na Vila Isabel, contra 0% dos alunos da Casa da Arte;
- 47% dos alunos melhoraram na escola depois de frequentar as atividades da casa, e 72% realizam suas tarefas escolares sozinhos;
- entre os indicadores de resultados qualitativos, esto aumento do interesse pela escola, por aprender, debater e trocar e pela leitura e redao de textos; valorizao da cultura nacional; ampliao da conscincia ambiental; maior interesse das famlias na vida acadmica de seus filhos; resgate de brincadeiras, saberes e canes; maior envolvimento de museus e instituies culturais no programa.
A avaliao de impacto nacional deve ser realizada em 2011, em parceria com o MEC e a UFRJ.
A Casa da Arte de Educar iniciou seu trabalho em 1999 na Mangueira, desenvolvendo um trabalho de educao complementar em oficinas de linguagens artsticas do Ciep Nao Mangueirense. No ano seguinte inaugurou sua primeira unidade no bairro (a atual a terceira casa) e, em 2003, abriu uma segunda casa, na favela de Macacos, no bairro de Vila Isabel. Agora, trabalha com a possibilidade de abrir uma terceira unidade, na comunidade de So Carlos, por solicitao da SulAmrica Seguros, em processo de negociao.
A partir de 2008, o projeto passou a ter alcance nacional, por meio da parceria com o Ministrio da Educao, que quer levar a Mandala dos Saberes para a rede de 10.042 escolas estaduais e municipais ligadas ao Programa Mais Educao. Neste ano, o trabalho de replicao ampliou por meio de parceria com o Ministrio da Cultura para levar a metodologia a Pontos de Cultura (entidades com aes de impacto sociocultural em suas comunidades reconhecidas e apoiadas financeira e institucionalmente pelo Ministrio da Cultura) nas cinco regies do Brasil (Belm, Braslia, Porto Alegre, Recife e Rio de Janeiro).
O conhecimento desenvolvido nas unidades da Mangueira e de Macacos, que servem de laboratrio para testar as prticas a serem replicadas. A Mandala dos Saberes foi sistematizada a pedido do Ministrio da Educao, o que gerou a publicao do caderno "Rede de Saberes Mais Educao Pressupostos para Projetos Pedaggicos de Educao Integral".
Capaz de ser aplicada em qualquer espao educacional (ONGs e escolas), a tecnologia social desenvolvida vem sendo disseminada por meio de seminrios de formao continuada para professores e de fruns virtuais de debates pedaggicos, de forma que cada escola possa construir projetos pedaggicos que expressem a cultura local.
Vale ressaltar que a formao de educadores aconteceu nos Estados de Minas Gerais, Par, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e no Distrito Federal.
O crescimento via polticas pblicas j faz parte do planejamento estratgico da organizao. Ciente de sua limitao em quantidade de beneficirios nas unidades diretamente administradas pela Casa da Arte, a empreendedora social optou pela expanso em escala de sua metodologia por meio de parcerias governamentais.
A pedido do Ministrio da Educao, a Mandala dos Saberes foi sistematizada com foco na educao integral. Posteriormente, o ministrio solicitou que a metodologia fosse adaptada e aperfeioada para a EJA (Educao de Jovens e Adultos).
A ONG tambm um Ponto de Cultura, responsvel por articular e disseminar sua metodologia entre Pontos de Cultura e escolas pblicas relacionadas a essas organizaes em todo o Brasil.
A fim de influenciar polticas com foco na qualificao da educao pblica brasileira, a empreendedora social tambm participa de debates, engaja-se em redes de gestores de ensino e professores nas trs esferas governamentais e lana livros relatando suas experincias.
A metodologia Mandala dos Saberes se estrutura a partir do dilogo entre os contedos escolares e a cultura popular. A instituio entende que o sucesso da proposta est diretamente articulado capacidade de integrao de experincias, contedos, projetos, intenes e mtodos, ou seja, do avano nas teses de Paulo Freire entre a educao e a cultura. O objetivo foi criar um sistema no linear e simples, capaz de representar o complexo esquema articulado entre currculos e a vida cotidiana. As mandalas podem assumir diferentes formas e assim permitir que a diversidade da cultura seja expressa em projetos pedaggicos. Todos os agentes envolvidos no processo (pais e responsveis, alunos de todas as faixas etrias, professores das escolas, coordenadores, diretores de escolas e membros das comunidade) apresentam experincias distintas que precisam estar articuladas em um projeto comum.
Dessa forma, foram selecionadas 11 reas de saberes comunitrios: habitao, corpo/vesturio, alimentao, brincadeiras, organizao poltica, condies ambientais, mundo do trabalho (moedas de troca), curas e rezas, expresses artsticas (verbais, visuais, corporais e musicais), narrativas locais e calendrio local.
J os saberes escolares relacionados foram: curiosidade, questionamento, observao, desenvolvimento de hipteses, descoberta, experimentao, desafio, identificao, classificao, sistematizao, comparao, relaes, concluses, debate, reviso, criar, jogar e, novamente, curiosidade (voltar a se perguntar).
Projeto pedaggico A partir desses saberes, a Casa da Arte estruturou seu projeto pedaggico em que a formao dos alunos acontece em cinco ncleos de pesquisa:
- artsticas so realizadas pesquisas nas linguagens visual, musical e corporal a partir do confronto entre o interesse identificado na comunidade, a produo contempornea e a histria e os desafios da linguagem abordada;
- pesquisa da memria so desenvolvidas oficinas de fotografia, vdeo e criao de textos com o objetivo de produzir reflexes acerca da identidade sociocultural das comunidades, constituindo um banco de dados comunitrio;
- pesquisa para a escola espao de desenvolvimento e aprofundamento dos contedos escolares, frente a uma nova abordagem da aprendizagem, buscando aliar os desafios escolares s outras atividades realizadas na ONG por meio dos saberes comunitrios;
- educao urbana tendo em vista que a cidade possui em si uma dimenso educadora, busca garantir aos alunos experincias reais onde vivem com visitao a museus, centros culturais e monumentos histricos do Rio;
- educao para cincias em parceria com o Museu de Cincias da Terra, tem como objetivo promover o interesse pelas cincias pela difuso do conhecimento cientfico, associando os desafios e as prticas locais aos globais.
DEPOIMENTOS
"Moro na Mangueira, no Buraco Quente, que fica num lugar como se fosse um vale. Ali os mais velhos dizem que o 'fervo' da Mangueira. Desde 2004, trabalho como coordenadora da Casa das Artes daqui. Fui aluna do projeto, antes de ser Casa das Artes, no ensino mdio. Foi a que conheci a professora Sueli.Depois, passei a trabalhar com os jovens e comecei a me destacar. A Sueli conta que me olhou com olhos mais sensveis. Ela diz que conseguia ver um dinamismo, uma vontade de aprender e crescer muito grande em mim.
A Casa das Artes a minha casa. Cada dia que tento levantar, ela a minha esperana. Aqui eu me sinto contribuindo com a minha comunidade. Muitas vm para c porque a me est trabalhando e ficam em casa sozinhas; outras vm com aquele dever que a me no sabe explicar.
Aqui atendemos 140 crianas e 50 adultos. Conheo todas as crianas e todas as suas histrias. Para entender o problema, preciso conhecer a histria deles. preciso dar bastante carinho, para que tenham fora de novo, tenham vontade de aprender de novo. As crianas tm suas histrias de vidas mudadas depois que passam a frequentar a casa.
O Srgio, por exemplo, um menino que estava com muita dificuldade. Um dia a me descobriu que o pai dele tinha uma outra famlia e abriu isso para todo mundo. Eu sempre via o Srgio empinando pipa, e ele no ia para o colgio.
A me dele pediu ajuda, sabia que eu era da Casa da Arte. No outro dia subi [o morro], fui conversar com o Srgio. Ele no acreditava em nada do que eu dizia, falou: 'O meu mundo acabou, meu pai tambm contava muita mentira'. Eu falei: 'Me d uma oportunidade para eu mostrar que diferente'.
E ele veio [participar da casa]. Depois, eu consegui trazer a me dele para a EJA [Educao de Jovens e Adultos]. Conseguimos empregar ela. O Srgio, um tempo depois, sentou aqui e disse: 'Tia, obrigado por no ter mentido pra mim'.
O maior retorno da casa quando eu subo a comunidade e as crianas veem pra cima de mim. Quando vou ao colgio, os professores falam: 'Nossa, quem essa?'. ' a Tia Carol', as crianas respondem.
Com a Mandala, a gente consegue ter mobilidade. Posso fazer um carinho na cabea dele, algo que nunca sentiu, e ainda estar educando. Sabe, a metodologia da Mandala te possibilita isso.
Quando as pessoas que esto atuando com ela tm essa sensibilidade, a coisa acontece. Porque consigo desenvolver a criana como pessoa, educacionalmente, mentalmente.
essa amplitude que a Mandala nos d e onde nos diferencia dos outros trabalhos. As pessoas s vezes acham que dar aula sentar na sala e dizer: 'Pega o caderno, todo mundo' e encher o quadro. No assim. Aqui, a criana participa com o professor, tem voz. A minha casa especial."
Rose Carol Andr da Silva, 28, pedagoga e coordenadora da Casa das Artes da Mangueira