Renda solidária
Professor universitário une pesquisador e cooperativa e desenvolve comunidades carentes
Em um "sambão" na USP, em 1970, a estudante de filosofia Josita Correto da Rocha quis dançar com "o cara mais louco da festa". O eleito foi Nicolau Priante Filho, aluno de física. Casaram-se dez meses depois.
Sem dinheiro, moravam numa república e cozinhavam os restos da feira, mas continuavam com as festas, que reuniam dezenas. Para comprar uma casa, emprestaram de 40 amigos.
Nicolau, 59, é um agregador. A primeira união foi com Josita, depois vieram as reuniões com os camaradas.
Em seguida, ajudou também na junção da física com a agronomia, da ciência com o social, do pesquisador acadêmico com a cooperativa.
Sua carreira universitária começou em 1977, dando aulas na Universidade Federal do Mato Grosso. As preocupações científica e social andaram juntas.
"A academia tem áreas em que, se a pessoa se limita, fica dez anos para ter uma publicação que serve só para aquilo", diz.
Em 1996, o grupo de Nicolau tentava desenvolver um secador de frutas, mas o dispositivo gastava 40 kg de lenha para produzir 1 kg de banana-passa.
A solução para o "incêndio florestal" não foi muito científica: veio num sonho.
Nicolau vislumbrou uma chaminé em ziguezague, que usava a energia perdida para o ambiente para secar fruta.
O protótipo foi feito no quintal de casa, e a lenha usada caiu para 4,5 kg.
Informação
Ao viajar aos Estados Unidos, Nicolau propôs à empregada da casa que abrisse uma empresa de secar frutas. Meses depois, sem achar o recibo do IPTU do imóvel, tudo estava na mesma.
"São pessoas sem acesso à informação. Como resolver isso? É produto competitivo, e não funciona?", indagou o físico.
A conclusão foi criar uma organização que trouxesse renda, uma cooperativa, mas que tivesse um elo com a ciência.
Nasceu então o conceito do pesquisador cooperado.
O projeto se concretizou com a Coorimbatá. Os cooperados secavam as frutas na casa de Nicolau, que fez parceria com uma rede de supermercados.
Hoje, a cooperativa atua com unidades produtivas de frutas, peixes e húmus de minhoca, e aposta na carne de jacaré.
Como uma das atribuições do pesquisador cooperado -função de Nicolau e de Josita- é cobrir prejuízos, a família investiu muito no novo "filho".
"Quando não tínhamos dinheiro, quem ajudou foram os amigos, que não eram abastados. Naquele tempo, eu era mais ajudado", afirma Nicolau.
"Devo muito à maneira como nos constituímos como família. Fomos diferentes e pudemos inovar em outras áreas."
À noite, no chorinho, Nicolau toca cavaquinho, e Josita canta. E reúnem amigos. "Quando viemos para cá, perguntaram o motivo das nossas festas. É festar!", explica o professor. "Em um lugar onde todos estão bem, eu vou estar bem."
Assista
Conheça mais sobre a Coorimbatá
Conheça as unidades produtivas da Coorimbatá
Na Coorimbatá, os produtos oriundos da agricultura familiar e da pesca artesanal viram combustível para o processo de empreendedorismo, inclusão social e geração de renda para os cooperado.
Para isso, a cooperativa atua com três unidades produtivas:
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Unidade de processamento de polpa de frutas, passas, doces, castanhas e fritas
Com a entrada de Nicolau e sua mulher na então desativada Coorimbatá, o foco do trabalho da cooperativa, então voltado para a pesca, mudou para o da desidratação de frutas.
Desde 2000 e usando o secador inventado pelo físico, a unidade industrializa bananas-da-terra, prata e nanica (Bananalícia) e mandioca (Mandilícia).
Também produz doces em barra (manga, caju e banana), passas de abacaxi, banana e manga e castanhas embaladas a vácuo.
No ano passado, foram processadas 29,5 toneladas de banana verde in natura, produzindo 7,2 toneladas de banana na forma de chips, e 730 kg de banana nanica madura, produzindo 172 kg de passas.
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Unidade de processamento de peixes e jacaré
Nesta unidade, são eviscerados peixes do rio (tambacu, dourado, pacu, corimbatá, piranha etc.) e de criações particulares em tanques, além de processada linguiça de peixe.
A princípio, a Coorimbatá foi criada para trabalhar com pesca, mas aspectos que vão do perfil empresarial dos cooperados a entraves na legislação fazem com que haja grande dificuldade na viabilização dessa unidade.
Apesar de estar trabalhando principalmente com frutas e húmus, a meta da coomperativa é criar bases para que a pesca se torne a sua principal atividade.
Para tal, foi iniciada uma articulação com a Cooperativa Agropecuária dos Pequenos Produtores de Chapada dos Guimarães-MT (Cooperagricultor), formada por pessoas removidas de suas terras para criação da barragem do rio Manso.
Além disso, deu-se início, em setembro, a uma parceria com a Aguacerito Leather, um dos maiores criadouros de jacaré no mundo.
Unidade de processamento de húmus de minhoca
O processamento do húmus é de importância estratégica para a Coorimbatá, pois propicia o uso ambientalmente e socialmente responsáveis dos resíduos das outras unidades produtivas e de outras empresas da região.
Além da produção da cooperativa em suas unidades de processamento, a Coorimbatá investe esforços na criação de uma rede de agentes em prol da economia solidária.
Veja alguns dos principais projetos estabelecidos pelos convênios da Coorimbatá
Graças ao vínculo com a Universidade Federal de Mato Grosso, em 2000, a Coorimbatá desenvolveu um eficiente modelo de proposição de projetos de patrocínio e convênios.
Entre eles, destacam-se:
Sistema Integrado de Inovação Tecnológica Social (2009-2010): proposto pela UFMT, propicia a ação articulada de entidades públicas e privadas em projetos de inclusão social e de desenvolvimento local;
Turismo Solidário - O Bom do Mato - Se é de Mato Grosso É Bom! (2008): em prol da presença desses empreendimentos em feiras e espaços turísticos, além da criação de roteiros turísticos com informações sobre produtos e artesanatos e capacitação de empreendedores em turismo nas comunidades;
O Bom do Mato na Baixada Cuiabana (2008): elaborado pela Consad Baixada Cuiabana (Consórcio de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local), realizou a inclusão digital de 1.008 alunos;
Sistema Integrado de Coleta e Industrialização do Peixe na Baixada Cuiabana (2007-2008): teve por objetivo estruturar o setor produtivo e de comercialização de produtos derivados da pesca profissional artesanal, diminuindo a distância entre o pescador e o consumidor final;
O pescador cooperado e a rede solidária
A figura do pesquisador cooperado, criada por Nicolau, é a de um funcionário (acadêmico) de uma universidade que leva conhecimento científico a comunidades de baixa renda e o relaciona aos saberes locais.
Ele não participa da renda do setor produtivo da cooperativa, mas, caso a cooperativa tenha prejuízos, como cooperado, também se responsabiliza pelas perdas.
Por ter criado esse método de atuação, a Coorimbatá recebeu o prêmio Finep de Tecnologia Social em 2004.
Essas comunidades fornecem matéria-primas que garantem o funcionamento das unidades produtivas de processamento de doces, fritas, de produtos feitos a partir do processamento de peixe e do processamento de húmus de minhoca produzido com resíduos sólidos das unidades produtivas.
A produção da Coorimbatá tem comercialização privilegiada na rede de supermercados Modelo, a maior de Mato Grosso, seguindo os valores do comércio justo.
Os resultados financeiros dessas operações é a fonte de renda das pessoas envolvidas nos processos produtivos, seja o produtor primário (agricultor ou pescador), seja o cooperado que atua nas unidades produtivas.
Foram criadas assim as condições para o estabelecimento da Rede de Colaboração Solidária, focada na inclusão social e na geração de renda em Mato Grosso e que teve patrocínio da Petrobras.
DEPOIMENTOS
A visão de um dos beneficiários do projeto"Até os 15 anos, vivi na roça. Estudei até o fim do segundo grau e comecei a pescar. Tinha fartura, dinheiro fácil.
Fui para o seminário. Conhecia a cooperativa, mas achava que não ia dar frutos, por causa do convívio das pessoas.
Conversei com o Nicolau e saí do seminário em 2005. Estava disposto a mergulhar no negócio.
O supermercado Modelo sugeriu que a gente fizesse húmus de minhoca. Quando começamos, dava R$ 150 por mês. Mas não é uma venda contínua. Tem dois meses que não consigo atender à demanda toda do Modelo. A minhoca precisa de 45 dias [para produzir o húmus].
Já tirei R$ 600, e a intenção é tirar R$ 800. O único problema é a minhoca, que está cara. Comprei 30 kg e estou reproduzindo. Vendendo três toneladas, dá R$ 800.
Com o jacaré, eu já vou ganhar isso aí. Se o jacaré der errado, meu pé de meia está no húmus.
Tenho mulher e um filho, e a gente já quase se separou por causa da cooperativa, que nem sempre dá dinheiro. Eu sei que dá para sobreviver disso.
No Pantanal, pescando, dá para ganhar dinheiro, mas a vida é sub-humana. Posso trabalhar de dia no frigorífico [com jacaré] e de noite aqui [com húmus.
Se você não acreditar, não tem nada que você vá fazer. Tem dias em que a gente não tem nada. Tem comida -a gente vira a noite e pega um peixe.
Mas uma vez meu filho estava doente e eu não tinha dinheiro para o remédio. Veio uma doutora e levou R$ 150 de húmus. Era o que eu precisava.
Às vezes, em dia que está mais difícil, que não tem mesmo, eu ligo para o Nicolau, peço R$ 100.
O Nicolau me fez acreditar no sonho dele e faz parte da família hoje. Ele bate em mim, mas eu não bato nele."
BENEDITO FERREIRA DE FRANÇA, 32, o Ditinho, é cooperado da Coorimbatá