Arte no canteiro
Administrador introduz atelis para operrios nas obras e ajuda a edificar novos pilares em suas vidas
Desde o princpio, o grande desafio de Daniel Manchado Cywinski, hoje com 35 anos, foi o de ligar dois universos: o da projeo, da arte, ao da realidade dura; o abstrato ao concreto.
E a distncia entre eles pareceu intransponvel em algumas ocasies. "No comeo do Mestres da Obra, chamavam a mim e ao Arthur [seu scio] de 'ets'", lembra ele.
Mas, como bem sabe, "a histria de qualquer projeto social depende de muita f, aquela f que ningum explica vai acontecer, no me pergunte por qu. preciso ter o brilho nos olhos".
O brilho "extraterrestre" do idealista acompanha Daniel desde quando ele estudava administrao de empresas. "Algo me movia a trabalhar com ambiente e sociedade", diz.
Mesmo antes de se formar, tornou-se educador ambiental em favelas de Santo Andr, sua cidade natal, em um tempo em que conceitos como o de sustentabilidade beiravam o abstracionismo.
Nessa poca, j conhecia o arquiteto Arthur Zobaran Pugliese, 35, que atuava com reciclagem de resduos em canteiros de obras. Certa vez, Daniel foi visit-lo em uma construo e tiveram a ideia: implantar atelis de arte dentro dos canteiros, aproveitando os restos de materiais para a confeco das peas.
"Temos em comum a paixo pela arte. Naquele mesmo ano [2001], por coincidncia, fomos passar um tempo na Espanha e fizemos uma imerso em Gaud. Ao ver tudo aquilo produzido com resduos, voltamos de l com a certeza de ser possvel fazer uma produo de arte a partir das sobras nos canteiros."
O pilar central da empreitada: orientar o trabalhador a incorporar a subjetividade ao manuseio daqueles materiais. "Uma vivncia com possibilidade de criao", define.
"O operrio usa as mesmas ferramentas no cotidiano, mas segue projetos. No ateli, a criatividade est presente. Essa a grande inverso, a oportunidade de ser dono da ideia do comeo ao fim." Da a logomarca do projeto, um capacete pensante.
Derrubando paredes
Mas, se o desenvolvimento do conceito ?o abstrato? no enfrentou grandes barreiras, sua operacionalizao ?o concreto? precisou implodir paradigmas. "Foi dificlima", recorda Daniel.
"At hoje a construo civil ainda uma das mais atrasadas em termos de desenvolvimento humano. Essa indstria nunca se preocupou em formar [sua mo de obra]. Era surreal chegar para uma construtora h seis ou sete anos e sugerir a implantao de um ateli de arte em um canteiro de obras. Os donos questionavam: 'Pra que esse negcio? Voc vai melhorar o meu peo?'. Era um mar de preconceitos."
Foram vrias "portadas na cara". "E vrias risadas, chegou a ser motivo de chacota", dimensiona a resistncia. "Mas havia uma fora maior. Algo para acontecer que, de to verdadeiro, mexia com as pessoas."
O espao para a concretizao da proposta foi encontrado, diz, nas excees da construo civil.
"Naquela meia dzia de empresas em busca de uma valorizao de marca, um diferencial de mercado e de responsabilidade socioambiental e tambm com a percepo de que preciso melhorar as condies de trabalho, de qualidade de vida."
Outro desafio foi derrubar a rigidez do prprio trabalhador da obra. "O educador, para ele, um cara meio estranho", observa. "Voc precisa ser muito simples, no pode ser petulante. Tem inclusive de modificar sua linguagem, conversar muito de igual para igual, o que no fcil. E precisa respeitar muito a sabedoria do operrio, que mexe no material como ningum."
Essa relao tem sido edificada desde a primeira oficina, em Mau, proporcionada por uma construtora de Santo Andr. "Meia hora por semana com trs operrios, perto de uma favela. Pensavam que desistiramos na segunda semana. Fizemos por seis meses."
A repercusso foi parar em uma pgina inteira do "Dirio do Grande ABC" e representou o trampolim para andaimes mais elevados, como um ano e meio em um canteiro com 500 trabalhadores em Santo Andr.
As dificuldades, hoje, ainda so muitas, e Daniel as analisa com os ps firmes no cho. "Procuramos entrar [nas empresas] sempre pelo RH. Mas se no fica claro para o departamento de marketing que d para capitalizar em cima, levar para o 'branding' [fortalecimento da marca], o projeto no acontece."
Assim, com a crise econmica que se estabeleceu no ano passado, percebeu que a "primeira coisa" cortada dos oramentos das empresas foram as aes de responsabilidade socioambiental. "O ano de 2009 foi pssimo. No sei como no fechamos as portas."
O Mestres da Obra, hoje, consome quase todo o seu tempo, mas, financeiramente, Daniel ainda no consegue viver apenas dele. Isso, porm, no abala sua determinao.
"Estamos com trs projetos colocados que, se sarem, vo significar algo que a gente nunca teve em volume de canteiros. Estou muito animado." Esse entusiasmo uma boa medida do que est por vir; afinal, aps tantos percalos, o visionrio j sabe bem onde est pisando.
Assista
Conhea mais sobre a Mestres da Obra
A valorizao do trabalhador da construo civil
Atuar na construo civil significa lidar com um universo em que baixos salrios, altos ndices de acidentes, desgaste fsico excessivo e relaes de trabalho desqualificadas so fatores recorrentes que criam ambientes de baixo desenvolvimento humano.
Nesse contexto, o Mestres da Obra estimula o desenvolvimento de um ambiente de trabalho mais saudvel, busca a valorizao humana e possibilita a construo de conhecimentos e de resgate das mltiplas referncias culturais existentes nos grupos de trabalho.
Mestres da Obra, alis, um nome que se refere ao modo como o trabalhador da construo civil deve ser visto: no existe um nico mestre, pois cada um mestre de algum modo e a obra precisa do conhecimento de todos para se realizar.
Alm disso, o nome brinca com a similaridade entre essas palavras do universo da construo e seus significados no universo artstico.
As aulas ?atualmente de dois meses, com mdia de 20 horas divididas em oito encontros? acontecem espaos instalados dentro dos canteiros especialmente para o programa.
Ali so realizadas atividades educacionais que so desenvolvidas em atelis-escola.
Neles, ocorre uma relao intensa com o aprendizado, com a construo e com a produo de conhecimento e de autoconhecimento, visando melhoria da qualidade de vida dos participantes.
Sob orientao de uma metodologia aplicada por educadores capacitados, os operrios utilizam os resduos encontrados no canteiro de obras para a produo de peas de arte e design, recuperando assim a condio de matria-prima desses materiais.
A verdadeira recuperao, e base do processo educativo, contudo, a da valorizao do saber e da cultura de cada um.
Tem-se como princpio o fato de que ningum mais do que os trabalhadores conhecem a transformao desses materiais de construo.
Nos atelis, a subjetividade, a criatividade e a oportunidade de sonhar substituem as ordens e diretrizes do trabalho de construo realizado diariamente na obra e as determinaes rgidas dos projetos arquitetnicos.
O resultado final do trabalho no ateli criao do trabalhador.
Diante das condies negativas em termos de sade do trabalhador, existente nos canteiros de obras brasileiros, o Mestres da Obra promove a reflexo sobre a realidade para a introduo de mudanas e interfere diretamente com aes de melhoria, especialmente nos aspectos da sade emocional.
Como resultados, buscam-se fortalecer a autoestima, qualificar os ambientes de trabalho, promover a sade, ampliar a compreenso das questes socioambientais e valorizar o capital social na cadeia produtiva da construo civil.
Conhea alguns dos projetos desenvolvidos pelo Mestres da Obra
Nos ateli-escola promovidos pelo programa, os trabalhadores da construo civil so convidados a participarem das aulas de arte durante o horrio de trabalho.
Todo mdulo apresenta referncias como base para o trabalho a ser desenvolvido. O desafio transformar resduos do canteiro em objetos de arte. Em 2008, aconteceu em quatro canteiros. A meta fechar 2010 em dez.
Alguns dos temas abordados nas aulas so: pintura de painis, xilogravura, design de objetos (mobilirio, ferro e arame, objetos de decorao, simetria e equilbrio e luminrias).
As atividades da Associao Mestres da Obra visam a:
- modificar positivamente o ambiente de trabalho da construo civil;
- promover a cultura por meio de atividades, cursos, palestras, eventos e outros meios adequados, oferecendo-os prioritariamente aos trabalhadores de canteiros de obra da construo civil;
- elaborar e aplicar estratgias voltadas para a diminuio de fatores que afetam a sade dos trabalhadores, tais como a habitao, o estresse e a falta de formao educacional, alm de aspectos emocionais e psicolgicos;
- promover a assistncia social por meio da integrao social de pessoas de baixa renda ou em situao de vulnerabilidade social por meio da arte, da msica, do teatro e das artes plsticas;
- dar apoio a projetos de complementao pedaggica e de formao profissional;
- prestar servios, produzir e ou comercializar bens, direta ou indiretamente vinculados a sua atividade-fim, como produtos com a marca da associao, livros e vdeos educativos e artesanato, alm de explorar direitos autorais ou de propriedade intelectual, sempre com o intuito de atingir os fins sociais de promover a sustentabilidade da organizao.
Programas paralelos
"Cine na laje"
Com o intuito de oferecer aos trabalhadores novas formas de conhecimento, a atividade exibe documentrios de curta-metragem que fortalecem a compreenso de questes socioambientais no Brasil e no mundo;
Teatro "Desconstruo"
A histria aborda temas relevantes sobre a famlia, a amizade, a cultura de origem e o valor do trabalho na construo civil;
Palestra "Sociedade e meio ambiente"
O encontro visa ao fortalecimento da compreenso de temas cotidianos ligados a questes sociais e ambientais da atualidade;"Olhares do canteiro"
Neste projeto, os trabalhadores registram, por meio da fotografia, as diferentes formas de ver seu cotidiano de trabalho. Ao final da ao, as fotos formam uma exposio que retorna para dentro do canteiro;Workshops "Transformao"
Vivncia com trs horas de durao que visa prtica da produo de arte e design a partir da transformao dos resduos encontrados nos canteiros de obras;Galeria Mestres da Obra
Exposio permanente das obras feitas em canteiro no bairro de Santa Ceclia (centro de So Paulo).
A arte como ferramenta para a reflexo da realidade como um todo
Os atelis do Mestres da Obra comeam com a aplicao de uma pea sem cor sobre uma com cor ou vice-versa.
Esse incio estratgico por ser o primeiro momento em que se consegue construir um objeto que no tem um porqu de existir.
Acostumados com um trabalho objetivo (construo de uma parede, um pilar, um telhado), veem no ateli a mesma lgica de ferramenta sobre o material, com a mesma sabedoria, mas ali permitido construir algo que no tem um objetivo to claro exceto ser bonito e esteticamente interessante.
"Se essa primeira virada de chave bem-feita, d condio para mais dez aulas. Ela , do ponto de vista educacional, um exerccio muito importante", ressalta Daniel.
Outra filosofia estratgica da associao no comercializar peas que so frutos do processo educacional de canteiro para gerar renda para a instituio ou para o operrio.
"O processo de comercializao desejado, mas no foi feito ainda, pois muito fcil o projeto todo desandar se isso no for bem planejado", diz Daniel.
Ele cita o caso de um aluno que, ao ver o sucesso de sua pea, decidiu sair da construo civil e fabricar objetos em srie, que, contudo, no tinham qualidade esttica.
"Nossa misso no tirar o trabalhador da construo civil, mas, sim, fazer com que enxergue sua atuao, e a vida como um todo, de forma ampliada", reitera.
Por fim, a entidade comea agora a trabalhar com estudantes de engenharia e arquitetura, com o objetivo estratgico de iniciar uma revoluo estrutural no setor em que atua. O primeiro passo foi dado com a Uninove.
" uma chance indita no pas de conversar com futuros profissionais que sairo da faculdade tendo ouvido falar sobre desenvolvimento humano. Hoje, quando eles se formam, entendendo somente de custos, estrutura, clculos, lucratividade, produtividade. Para eles, o operrio meramente um empilhador de tijolos, essa a realidade", explica Daniel.
DEPOIMENTOS
A viso de um dos beneficirios do projeto"Eu morava na Bahia e vim sozinho para c h cinco anos. L, trabalhava na rea rural com meus pais e estudava.
Aqui sou auxiliar de encanador. Acordo todos os dias s 4h, saio s 5h e chego ao canteiro s 7h. Volto pra casa s 19h.
J tinha ouvido falar do projeto e tinha vontade de participar, pois j trabalho com arte desde os 15 anos. Fao vrias coisas, como enfeite para estante e brinquedo para crianas, em casa.
Agora, vim para complementar e aprender mais.
Com o projeto Mestres da Obra reforcei meus conhecimentos de arte. A professora d aula com pacincia, isso importante. Ela d ideias e acata as nossas tambm.
No comeo, estava na expectativa, pensando: 'Ser que vai ser bom, ser que vai ser ruim? Ser que vai corresponder s minhas curiosidades?'. Mas, depois da primeira aula, no tive mais dvidas.
Era um curso legal e 'incentivante'. Aprendi que arte a expresso livre, ou seja, expressar o que voc tem no pensamento.
Esse projeto contribui bastante, inclusive na maneira de expressar, algo que sempre quis ter. Agora consigo transmitir para meus colegas algo positivo, como fazer uma arte.
O importante aprender e passar alguma coisa para seus colegas. Alguns tm vontade de aprender, mas no tm tempo, falam que a idade no ajuda. Eu acho que no tem nada a ver com a idade e, sim, com a fora de vontade de cada um.
A partir do momento em que voc entra em uma oficina, voc e seus colegas comeam a colocar ali na prtica as suas ideias, conseguindo respeito, confiana e muita amizade das pessoas.
bom, aqui venho fazer minha arte, converso um pouco com os colegas e da chego em casa e paro para refletir. Penso que estou participando de algo de que nunca imaginei participar.
Eles elevam minha autoestima e, com ela l em cima, no outro dia estou com mais vontade de trabalhar, mesmo sabendo que um trabalho pesado, cansativo, pois da penso que na obra no s trabalho, tem curso, tem gente boa, amizade, conhecimento, uma p de coisas."
DAVI PEREIRA DOS SANTOS, 29, operrio da Klabin Segall e participante do ateli-escola do Mestres da Obra