Líder de cooperativa faz lixo renovar cidadania
Do poder de Brasília, empreendedora recebe o que vai para a lixeira; com essa matéria-prima e com inconformismo, dá fonte de renda e orgulho a 200 famílias
Sobrenome: Silva. Cargo: presidente. Residência: Distrito Federal. Escolaridade: ensino fundamental. Compromisso: social.
Coincidências à parte, esse é o resumo da biografia de Sônia Maria da Silva, 43, líder da cooperativa 100 Dimensão, localizada no coração do país. O que liga Sônia ao poder de Brasília é o lixo. De lá, ela tira a matéria-prima que, transformada em renda, alimenta 200 famílias de Riacho Fundo, região pobre do Plano Piloto.
Mulher, negra e pobre, sabia que a vida não seria fácil. Para atingir objetivos, pôs em prática todas as suas características. Da mãe, herdou o pragmatismo; do pai, a solidariedade; do irmão mais velho, o patriotismo.
Filha de mãe solteira e irmã de outros seis, de pais diferentes, a líder da 100 Dimensão foi criada dentro de rígidos padrões. A mãe, Odete Maria José da Silva, auxiliar de enfermagem, trabalhou até descobrir um câncer. Fria e severa, quase não dava carinho aos filhos. Sônia se lembra bem disso.
"Toda vez que caía, chorava, nem tanto pela dor, mas pela busca do carinho. A resposta era sempre a mesma: 'Seca as lágrimas, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima'." Sem mágoas, diz acreditar que a mãe era sábia e só quis prepará-la para a dureza da vida.
O pai, Arlindo José dos Santos, Sônia só conheceu aos 12 anos, sem a mãe saber. A revelação foi feita por uma amiga da família. Assim que se apresentou, foi acolhida por ele, pela madrasta e por 17 irmãos. Generoso, criava mais cinco órfãos. No pai, ela entendeu a origem de seu espírito solidário.
Casada e mãe de dois filhos, o segundo com síndrome de Down, viu a vida virar de ponta-cabeça. Para cuidar do filho, abandonou o trabalho como auxiliar de enfermagem, mesma função da mãe.
A renda do marido não conseguiu segurar as despesas: venderam tudo e foram morar em uma barraca na periferia. Inconformada, reunia-se com outras famílias do assentamento para debater como gerar renda. Até que, um dia, por acaso, ouviu na TV: "O lixo é a solução do mundo''. Esses segundos mudaram sua vida.
Transformando lixo em artigos de moda, de papelaria e em móveis, a 100 Dimensão atendia 20 famílias em 2000. Hoje, são 200. A renda mensal de cada um gira em torno de R$ 400. O que realça seu valor social é o centro comunitário, com assistência odontológica, capacitação profissional, educação e atividades artísticas.
Eleita pela Caixa Econômica Federal uma das dez em Melhores Práticas em 2003/2004, a 100 Dimensão foi o tema vencedor do Prêmio Vladimir Herzog 2005 na categoria documentário.
Exemplo vivo do impacto social da cooperativa, Angela, 20, travesti que deixou a prostituição, tornou-se a mais célebre representante dos gays de Riacho Fundo. Hoje, as bolsas que desenvolve a partir de lacres de latinhas de refrigerante ou de cerveja são exportadas para os EUA.
Embora singular, Sônia conjuga suas ações sempre no plural, usando o "nós". Nas reuniões que preside, nunca senta-se na ponta da mesa. Expressões como "à frente de" são imediatamente trocadas para "ao lado de".
A empreendedora separa a cooperativa da vida pessoal. Para a organização, a meta é construir uma megausina de plásticos, que reunirá outras 13 cooperativas locais. Na vida, dois sonhos: casar-se de véu e grinalda e reencontrar o irmão mais velho, Antonio Francisco da Silva, que saiu de casa aos 20, após brigar com a mãe. A última carta trazia no remetente a cidade de Guarulhos (SP).