Acaso ensina psicloga a reciclar papel e pessoas
Descoberta de que o papel reciclado ajudava pacientes com transtornos psquicos graves a desengavetar planos pessoais e voltar vida em sociedade deu origem a projeto social
Uma experincia de vida traumtica costuma ser a inspirao para empreendedores criarem um projeto social. A psicloga e psicanalista Eliana Tiezzi Nascimento, 44, no passou pelo batismo de fogo. No desenrolar de sua trajetria profissional, partiu da observao apurada para mudar a vida das pessoas que encontrou.
Espinhoso foi convencer os outros de que sua idia daria certo. "Disseram que eu estava ficando louca. Parei de contar para colegas o que estava fazendo, porque recebi muitas crticas", lembra Eliana, referindo-se ao projeto Papel de Gente, que hoje rene 25 pacientes psiquitricos que tm transtornos psquicos (como neurose grave e psicose).
Em uma casa na Aclimao (zona oeste de So Paulo), eles reciclam papel para fazer cadernos, cartes, agendas e outros brindes vendidos a empresas parceiras.
Mas "o papel reciclado", conta, " s um meio". O fim preparar as pessoas para voltar ao mercado de trabalho e vida social e incentiv-las a traar projetos pessoais.
Tudo comeou com um pedido de Natal. Em 1994, a psicloga trabalhava em uma clnica psiquitrica e passava por uma "crise dos sete anos" no trabalho. "Os pacientes vinham em crise, melhoravam e saam. Mas alguns voltavam e iam perdendo capacidade cognitiva e concentrao. No via sentido no que eu fazia."
Mas o pedido natalino partiu da direo da clnica: ensinar os pacientes a fazer cartes de Natal. Como, por segurana, era proibido usar tesoura, estilete e at pincel, entrou em cena o papel reciclado, que a psicloga conheceu ao ver um programa infantil com a filha. "A direo topou, e os pacientes se envolveram muito."
Foi ento que Eliana percebeu o papel do reciclado. "Um paciente me disse: 'Esse papel horroroso, isso um lixo'. Muitos falaram assim, e eu comecei a perceber que as falas mostravam que o papel era um bom intermedirio para falar sobre as questes internas."
Estimulados a transformar o "papel feio" em peas bonitas, os pacientes se empolgaram e comearam a vender o que produziam. "Sentiram que o que faziam era valorizado pelos outros, situao qual no estavam acostumados, pois uma produo psictica no faz sentido para a sociedade."
Reciclagem interna
Eliana tambm notou que a venda dos artefatos reacendeu desejos que h muito haviam sido abafados pelos efeitos do sofrimento psquico - como comprar uma roupa nova ou convidar uma "paquera" para sair.
Juntando todos os ingredientes, ela formatou um projeto social. Mas, ao colocar os preceitos no papel, sofreu bastante resistncia de seus pares. Especialmente porque achava que no era arriscado dar tesouras aos pacientes. "Para o sistema, o paciente tem sempre de viver em conteno", avalia.
Hoje, ela recebe pacientes encaminhados por servios de sade, a maior parte da rede pblica, para a etapa de sociabilizao - eles continuam fazendo tratamento psiquitrico. Quando o projeto pessoal deles est pronto e eles se sentem preparados para lidar com os obstculos, hora de deixar a Papel de Gente.
Como eles, Eliana tambm tem seus desejos: fazer de sua iniciativa uma franquia social, cotas nas empresas para pacientes psiquitricos e uma espcie de Bolsa Trabalho para eles. "Esse contato muda o imaginrio coletivo. So pessoas que tm uma doena, mas que tambm tm outros interesses. Independentemente da patologia, a vida no pode parar."