Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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Uma pitanga na Paulista

Coloquei o pé pra fora do táxi e quase pisei nela. Em plena avenida Paulista, a cerca de cinco centímetros do meu pé, estava uma inacreditável pitanga madura. Não fosse pela harmonia composta com a cor de minha sapatilha, quase do mesmo escarlate, talvez tivesse me passado desapercebida como à maioria dos pedestres ensimesmados. Uma pitanga na Paulista? Como?

Peguei a fruta na mão. Era real. Olhei para cima. Nada. Para os lados. Nada. Comecei a fazer uma historinha de algum comedor de pitangas que, nestes tempos áridos, ainda teria uma pitangueira no seu quintal e teria saído apressado do café da manhã a comer pitangas até o escritório deixando suas marcas inusitadas pelas calçadas. Já estava dando até um nome pro sujeito, quando dei de cara com a realidade: uma pitangueira carregada e exuberante em plena selva de concreto.

São Paulo nos oferece muitas surpresas. Já tinha me dado conta dos pés de fruta que crescem na cidade. As goiabeiras da avenida Sumaré, os pés de café de Higienópolis e outras frutíferas além muros que sabe-se lá quem cuida. Quem será que plantou um dia essas árvores de casa nas calçadas? Destinados a quem seriam seus frutos? Todos nós? Quem come as goiabas da Sumaré? E as mangas do Pacaembu?

Apesar de já ter visto até outras pitangueiras na metrópole, o exemplar da Paulista me pegou de surpresa. Parecia que eu tinha tirado a sorte. O vermelho brilhante da frutinha na palma de minha mão me renovava a esperança de ver dentro do breu que enfrentamos de olhos abertos.

Não tive coragem de comer a pitanga que quase chutei pra sarjeta. Embrulhei-a em um lenço de papel e segui para o meu compromisso.

Não por acaso era uma pitanga. Apesar de seu sabor e potencial nutritivo, é uma fruta pouco levada a sério. Pitanga não se compra, se ganha. Mal se planta, porque nasce. Parece precisar de pouco pra viver. Quando se come, pode amar-se, mas, se não se tem, não se sente falta. A pitanga resiste, se basta e enfrenta a metrópole.

Quando cheguei em casa, desembrulhei-a e a deixei sobre uma folha de papel. Na mancha que restou de seu passar, desenhei uma tosca pitanguinha e preguei o papel na parede como um amuleto de resistência.

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